Desafios escalares do planejamento urbano-regional: reflexões sobre recuperação de mais-valia a partir da Operação Urbana Consorciada da Linha Verde em Curitiba


Ana Carolina Martins Gavriloff
Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Mariana Galacini Bonadio
Mestre em Desenvolvimento Territorial Sustentável pelo Consórcio internacional EM SteDe (UNIPD; K.U. Leuven; Paris 1 - Sorbonne e UCDB).

1. Introdução

A normatização do Estatuto da Metrópole em 2015 (Lei Federal nº 13.089/2015) caracteriza o mais recente cenário de debate quanto à elaboração de políticas de planejamento territorial para as aglomerações ou regiões metropolitanas, denominadas por Moura (2012) de arranjos urbano-regionais. Se por um lado a nova regulamentação institucional desta escala pode ser celebrada como um avanço para os dilemas da governabilidade metropolitana, por outro, o Estatuto tem pela frente diversos desafios para a concretização dos princípios da função social da cidade e da propriedade, pilares da ordem urbanística brasileira. 

No contexto deste  artigo, buscaremos traçar algumas reflexões quanto aos desafios escalares do planejamento à luz da gestão social da valorização da terra, considerando a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de metropolização, aspecto fundamental do debate de reescalonamento da gestão e ordenamento territorial na estrutura funcional do Estado brasileiro. Para tal, apostamos na confrontação do que chamaremos de “espaço do problema” urbano-regional – no qual se materializa o paradoxo de lócus privilegiado para a concentração de riqueza e de reprodução das desigualdades socioespaciais do abismal déficit social brasileiro – e o “espaço da ação política”, normatizado pelos dispositivos e instrumentos do Estatuto da Metrópole. Ao adotarmos a dimensão urbano-regional da segregação socioterritorial e da precarização urbana como o “espaço do problema”, defendemos que a perspectiva instrumental e política da recuperação de mais-valia é também um desafio escalar do planejamento, ao ser questionada e perseguida como um dos objetivos do “espaço da ação política” metropolitana. 

Sob essa perspectiva, interpretamos que a gestão social da valorização da terra é um dos sombreamentos da regulação do planejamento territorial proposto pelo Estatuto da Metrópole, visto que seu instrumental se mantém refém da escala municipal e do plano diretor para a efetivação da política urbana. Para alimentar criticamente esta reflexão, o processo de formação da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e a Operação Urbana Consorciada Linha Verde (OUC-LV) serão utilizadas como referência para a análise dos entrelaçamentos socioespaciais e políticos da utilização de instrumentos de planejamento na esfera municipal, porém com impactos que atravessam a multiplicidade escalar que conforma o urbano-regional. 

As reflexões propostas partem, inicialmente, de uma contextualização teórica para a problematização da construção das escalas do planejamento territorial e as limitações dos instrumentos de recuperação de mais-valia, tendo em vista o processo de reescalonamento da gestão e ordenamento territorial de dimensão urbano-regional. A exemplificação da problemática a partir da OUC-LV, refere-se a um estudo anterior mais abrangente quanto ao impacto do projeto implantado na antiga BR-116 em Curitiba (GAVRILOFF, 2013), fundamentado numa comparação de dados de preço de terrenos ofertados para venda entre 2000 e 2012, nos diferentes setores de zoneamento da cidade e no recorte espacial da OUC-LV, analisando o desenvolvimento da valorização dos imóveis a partir da utilização do instrumento.

Ao assumirmos o Estatuto da Metrópole como um processo ainda inconcluso de um novo arcabouço jurídico-regulatório orientado ao desenvolvimento urbano-regional, acreditamos que o debate quanto à distribuição dos ônus e bônus da metropolização na utilização de instrumentos de recuperação de mais-valia poderá auxiliar no debate de uma agenda mais consistente na efetivação da função social da cidade e da propriedade urbana nesta escala.

2. O desafio escalar do planejamento: o paradoxo do “espaço do problema” e o “espaço da ação política” dos arranjos urbanos-regionais

No Brasil, as reflexões empreendidas para a apreensão dos desafios do planejamento de dimensão metropolitana não são, definitivamente, atuais, mas dispõem do Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/2015) como o mais recente cenário de debate. Ainda que cobrindo realidades distintas nas diversas regiões do país, as aglomerações e regiões metropolitanas se particularizam por dinâmicas que transcendem as fronteiras municipais, configuradas pela complexidade da abrangência regional. Soma-se que esses arranjos territoriais adquirem maior relevância na ampliação geográfica do atual processo de acumulação, elevados à localização preferencial para a valorização do capital (KLINK, 2013; SMITH, 2000), materializando o paradoxo de lócus privilegiado para a concentração de riqueza e de reprodução das desigualdades socioespaciais que caracterizam o abismal déficit social brasileiro.

Denominadas por Moura (2012) de arranjos urbano-regionais, as aglomerações e regiões metropolitanas demonstram problemáticas sociais, econômicas, ambientais etc., que imbricam – ao menos, espacialmente – as fronteiras político-institucionais do planejamento brasileiro, no qual vigora a divisão em três distintos níveis federados para a definição de políticas territoriais (União, estados e municípios). Contudo, independentemente da configuração jurídica-reguladora da política territorial brasileira, uma característica que fundamenta os arranjos urbano-regionais é a multiplicidade escalar. Podemos especular, então, quanto à possível incoerência entre o espaço pelo qual se estendem os problemas socioespaciais – que chamaremos, grosso modo, de “espaço do problema” – e os níveis institucionais nos quais se estabelecem as ações de planejamento territorial – o “espaço da ação política”. Esta incoerência pode ser debatida, primeiramente, pelo próprio processo controverso de definição das escalas para o planejamento urbano e regional.

Para uma argumentação inicial, segundo Klink (2013), não há a priori uma combinação ideal para um arranjo institucional de planejamento, visto que não existe nada inerente a uma escala territorial precisa. Apresentando características de fluidez à rigidez, as escalas – denominadas local, regional, nacional, supranacional e outras – sobrepõem-se, imbricam-se e relacionam-se (KLINK, 2013). Segundo Gonçalves (2006), as escalas só existem na medida em que são agenciadas; ou seja, os processos instituintes que conformam as diferentes escalas de poder territorial se forjam através de agentes que agem por meio delas – sob determinadas relações sociais e de poder – em que alguns grupos e projetos se afirmam e outros são submetidos e negados. Assim, podemos entender a escala como uma construção social, política, simbólica e discursiva, articulada por meio de projetos, estratégias e ações dos agentes que a constroem (VAINER, 2001; KLINK, 2013; SMITH, 2000). 

Vainer (2001) aponta que os processos econômicos, políticos, sociais e outros possuem dimensões quase sempre transescalares, sendo a conformação da escala político-institucional a materialização de processos sociopolíticos de territorialização. Logo, podemos compreender as escalas também como instrumentos de confronto e negociação, como arenas de disputa de poder discursivo e material, antes de serem os campos legítimos da ação política. Tal entendimento nos permite questionar as escalas em que o planejamento territorial brasileiro pressupõe intervir, como se respondessem inerentemente a uma adequação das modalidades da ação estatal à resolução de determinadas questões socioespaciais. Observar a lógica da delimitação escalar para o exercício do poder do Estado (KLINK, 2013) nos autoriza, ao menos, a suspeitar que a formalização de fronteiras jurídico-administrativas para a incidência do planejamento – precisando unidades com status legal e funções específicas dentro da estrutura funcional do Estado – se dá no âmbito da negociação política e da capacidade de agência dos agentes envolvidos em sua construção. Importante destacar que, ao referenciarem uma territorialização política, a escala do planejamento pode ser definida em beneficio, ou não, da efetivação da função social da cidade e da propriedade – que, em teoria, devem balizar a política territorial brasileira. 

A renovação do debate quanto ao reescalonamento para a gestão e ordenamento territorial das aglomerações e regiões metropolitanas nos convida a aprofundar sobre os possíveis aspectos contraditórios na conformação das escalas do planejamento: o “espaço do problema” urbano-regional em contraposição ao “espaço da ação política” normatizado pelos dispositivos do Estatuto da Metrópole. Uma primeira crítica possível a este instrumento é que, em conteúdo, ao retomar o debate das unidades metropolitanas, faze-o essencialmente a partir de um esforço conceitual quanto ao optimum dimensional de tais entidades (ou seja, a normatização da “escala do problema”), definindo as características dos arranjos socioespaciais que podem, ou não, ser considerados para a institucionalização jurídico-administrativa metropolitana; debate indispensável, mas que não é o suficiente para confrontar o arranjo metropolitano como a atual arena privilegiada de disputa entre agentes para a hegemonia sobre a política territorial de dimensão urbano-regional.

Esse aspecto se mostra relevante para a discussão sobre o “espaço da ação política”, visto que o agenciamento das áreas metropolitanas pelo atual processo produtivo demonstra uma manifestação dos “bônus” da metropolização de forma seletiva nos municípios polo, sem irradiar potencialidades para a periferia, agravando um quadro de “metropolização ex-post” (ROLNIK; KLINK, 2011). A desigual distribuição de recursos urbanos entre os entes federados, historicamente manifesta pelas disparidades socioespaciais e ambientais acumuladas no processo de urbanização brasileira desde a década de 1930, já se via agravada no contexto de retomada de investimentos nas grandes cidades a partir da década de 1990. Atualmente, as áreas metropolitanas alçadas a pivôs de um crescimento econômico, sustentado pela lógica das parcerias público-privadas e da construção das novas engenharias financeiro-institucionais em torno do planejamento e da execução de grandes projetos de infraestrutura e de empreendimentos, tendem a ampliar as desigualdades no ambiente urbano e político de dimensão urbano-regional. 

Não se trata apenas da questão de primazia da força decisória ou dos “benefícios” do município polo em detrimento dos municípios periféricos de uma aglomeração ou região metropolitana. O “espaço do problema” urbano-regional consiste também da insuficiência da escala municipal para responder a determinadas funções do planejamento e da gestão territorial; entre elas, a realização da função social da cidade e da propriedade, visto que os desafios para sua concretização ultrapassam os limites municipais dos arranjos urbano-regionais. Assim, a possível inadequação do ordenamento jurídico do Estatuto da Metrópole também se apresenta na permanência da legitimação político-institucional da aglomeração ou região metropolitana a cargo dos estados-membro, via lei estadual – mesmo que em moldes “renovados” de governança interfederativa – e a manutenção do plano diretor como instrumento principal da política urbana, sombreado pelo plano de desenvolvimento urbano integrado proposto pelo novo Estatuto. O espaço da ação política metropolitana não reconfigura, portanto, nem a agência do estado-membro nem a dos municípios partícipes de uma entidade metropolitana, nem adota para si responsabilidades federativas do ordenamento territorial, mantendo-se dependente da tratativa da questão metropolitana no âmbito estadual e municipal. 

Do ponto de vista da maioria dos projetos políticos e das agendas de governo até então estruturadas nas escalas metropolitanas, a desarticulação em torno da definição de metodologias e diretrizes comuns dos planos diretores evidencia a fragilidade da capacidade de controle social sobre o ordenamento territorial de dimensão urbano-regional, afastada das exigências da função social da cidade (KLINK, 2013; FRANZONI, 2015; GORSDORF, 2009). Questionamos, então, a efetividade do planejamento urbano-regional em reduzir as desigualdades socioespaciais intraurbanas, assim como as diferenças estruturais intrametropolitanas, na maneira em que foi articulado pelo Estatuto da Metrópole.

3. O desafio escalar do planejamento sob a perspectiva da gestão social da valorização da terra de dimensão urbano-regional

Na moldura institucional brasileira a realização do ordenamento territorial exige a execução da política urbana como preconizada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade; ou seja, deve ser pautado por dois princípios fundamentais, pilares da ordem urbanística: o princípio da função social da cidade e o da função social da propriedade urbana. 

Os princípios de função social da cidade e da propriedade são, constitucionalmente, os balizadores do desenvolvimento urbano e regional. O princípio da função social da propriedade é igualmente reafirmado como princípio da ordem econômica e financeira (BRASIL, 1988, art. 170, III) e permeia todo o texto dos dispositivos da política urbana (BRASIL, 1988, art. 182 e 183) assim como o texto da política agrícola e fundiária (BRASIL, 1988, art. 184 a 191). Ao menos normativamente, a Constituição de 1988 superou a concepção da propriedade como unidade restrita ao interesse privado ou de mercado para uma concepção da propriedade em sua dimensão coletiva e social. A adoção desse princípio assume que o uso da propriedade se reflete não apenas na efetivação dos direitos individuais – dentre os quais o direito de propriedade – mas também na efetivação dos direitos sociais, como o direito à moradia e à mobilidade urbana, e dos direitos difusos, incluindo o direito ao meio ambiente equilibrado e ao ambiente urbano (SOARES; FERES, 2007).

O Estatuto da Cidade regulamenta o capítulo da política urbana da Constituição Federal do Brasil, estabelecendo diretrizes gerais, normas e instrumentos de regulação do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (BRASIL, 2001, art. 1º). Também pelo Estatuto da Cidade, a escala do município é normatizada como a principal efetivadora da função social da cidade e da propriedade urbana, visto que estes princípios se constituem como exigências no momento de aplicação, valoração e ponderação das normas dos planos diretores.

No contexto da reflexão aqui apresentada, duas diretrizes do Estatuto da Cidade merecem destaque para a garantia das funções sociais da cidade e da propriedade urbana: a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização (BRASIL, 2001, IX, art. 2º) e a recuperação dos investimentos do Poder Público que tenha resultado na valorização de imóveis urbanos (BRASIL, 2001, XI, art. 2º). Ambas diretrizes são orientadas para a gestão social da valorização da terra – também denominada de recuperação da valorização fundiária ou recuperação de mais-valia urbana (SANTORO; CYMBALISTA, 2004). Estes dispositivos fixam um critério fundamental ao aspecto econômico do processo de urbanização, estabelecendo a distribuição do ônus e bônus segundo um critério de justiça para reversão da desigualdade socioespacial (LEVY; SANTORO; CYMBALISTA, 2004).

Sob a perspectiva da gestão social da valorização da terra, as desigualdades socioespaciais são entendidas, grosso modo, como resultantes de um processo urbano excludente cujo valor de uma propriedade ou imóvel bem localizado e servido de infraestrutura é apropriado de maneira privada, por meio de uma valorização que provém de investimentos públicos em determinadas porções do território. A gestão social da valorização da terra parte do pressuposto que tais acréscimos no valor de propriedade, derivados de ações estatais – tais como investimento em infraestrutura e serviços ou decisões regulatórias sobre o uso do solo urbano – não devem ser apropriados privadamente (LEVY; SANTORO; CYMBALISTA, 2004). Ao contrário, o incremento deve retornar à coletividade, revertido em benefício ao desenvolvimento urbano equitativo. Logo, investimentos públicos na urbanização são considerados impactantes na economia e na sociedade, sendo necessários mecanismos para diminuir as distorções da interação Estado e mercado na política urbana (BALTRUSIS, 2006).

O Estatuto da Cidade instituiu uma série de instrumentos jurídicos e financeiros para reprimir tal apropriação privada da valorização fundiária, visando o controle da especulação imobiliária, assim como objetivando a recuperação dessa mais-valia. Dentre os instrumentos, alguns apresentam potencialidades específicas para a recuperação de parcelas da valorização fundiária decorrente de investimentos públicos a serem direcionadas para o interesse coletivo: contribuição de melhorias (BRASIL, 2001, art. 4º); outorga onerosa do direito de construir (BRASIL, 2001, seção IX); as operações urbanas consorciadas (BRASIL, 2001, seção X). Trataremos mais especificamente deste último.

A Operação Urbana Consorciada (OUC) permite ao poder público municipal excepcionar a legislação ordinária de uso e ocupação do solo em um perímetro urbano específico – delimitado por lei específica – outorgando, de forma onerosa, índices e parâmetros urbanísticos adicionais. É considerada um procedimento urbanístico orientado à transformação e requalificação de determinadas áreas da cidade e/ou com objetivo de implantação e ampliação da infraestrutura no perímetro delimitado para a operação. Os direitos urbanísticos acima dos limites estabelecidos são permitidos em troca de contrapartida financeira a ser paga pelos interessados, possibilitando a recuperação de recursos da valorização adicional que devem, contudo, ser aplicados na execução de intervenções públicas no mesmo perímetro da área da operação. Ao mesmo tempo em que é considerada um instrumento para o financiamento de empreendimentos urbanos, é notadamente um regime de parceria entre o poder público e o setor privado.

Como toda a renda arrecadada na contrapartida é obrigatoriamente direcionada para o investimento na operação em questão, a OUC é certamente o instrumento mais controverso do Estatuto da Cidade quanto à promoção do interesse coletivo e comprometimento com a função social da propriedade. As experiências de utilização deste instrumento pelos municípios têm revelado uma dinâmica de favorecimento do mercado imobiliário e acumulação de recursos, ao contrário de recuperar a mais-valia produzida pelo investimento público em favor da coletividade (LEVY; SANTORO; CYMBALISTA, 2004). Segundo Fix (2001), ainda que haja a recuperação da valorização fundiária, essa, ao ser reinvestida no mesmo perímetro da operação, acaba por reconcentrar os recursos e investimentos e não redistribuir espacialmente a mais-valia recuperada pela outorga onerosa.

A OUC deve ser aplicada em consonância com as diretrizes de desenvolvimento do município pelo plano diretor, definidas as áreas para sua utilização em lei municipal. O plano diretor é, então, o instrumento que deve explicitar a realização da gestão social da valorização da terra. Ao adotarmos a dimensão urbano-regional da desigualdade socioespacial como o “espaço do problema” para as aglomerações e regiões metropolitanas, a perspectiva da justa distribuição do ônus e bônus da urbanização também deve ser reescalonada, uma vez que o processo excludente da urbanização ultrapassa os limites municipais e os do plano diretor. Sob essa perspectiva, a desejada recuperação de mais-valia pode ser interpretada como um dos sombreamentos entre a regulação do planejamento territorial na escala municipal e sua possibilidade de efetivação na escala metropolitana, apresentando-se como mais um dos desafios para o desenvolvimento urbano-regional.

Um dos objetivos do Estatuto da Metrópole é preencher as lacunas do Estatuto da Cidade quanto à articulação das funções de interesse comum na escala metropolitana, incluindo o desenvolvimento urbano integrado. A atuação dessa esfera nos moldes da governança metropolitana interfederativa, preconizada pelo novo Estatuto, deve, ainda assim, ser pautada pelo imperativo de democratização da cidade e pelo direito urbanístico estabelecido pelo Estatuto da Cidade (BRASIL, 2015, art. 1º, §2º).

O Estatuto da Metrópole, no artigo 9º, lista os possíveis instrumentos a serem utilizados no desenvolvimento das regiões metropolitanas e de aglomerações urbanas, entre eles: plano de desenvolvimento urbano integrado (PDUI); macrozoneamento para a unidade territorial; planos setoriais interfederativos; operações urbanas consorciadas interfederativas; delimitação de zonas para aplicação compartilhada dos instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade; parcerias público-privadas interfederativas. Com relação ao “espaço da ação política”, segundo as normas desse Estatuto, são os estados-membro os entes competentes para a instituição destes instrumentos via lei estadual, cabendo aos municípios compatibilizarem seus planos diretores às diretrizes apontadas para a unidade territorial (BRASIL, 2015, art. 10º, §3º).

Assim, o que de certa forma poderia amortecer o municipalismo das políticas urbanas e promover a gestão social da valorização da terra de dimensão urbano-regional, evidencia-se dependente da tratativa da escala metropolitana dada pelos planos diretores para a execução e decisão sobre as formas que, na prática, concretizam a dinâmica entre a escala municipal e a metropolitana (GORSDORF, 2009). O Estatuto da Metrópole abre o campo de possibilidades para a recuperação da mais-valia urbano-regional, mas sem aprofundar quanto à efetiva aplicação compartilhada de instrumentos, uma vez que reitera os espaços da ação política nas escalas municipal e estadual. 

Ou seja, abre-se a oportunidade para a reflexão da distribuição do ônus e do bônus da urbanização metropolitana, que também aparenta possibilitar a reprodução da distorcida interação Estado e mercado, ao reforçar como instrumentos de desenvolvimento urbano-regional os aparatos financeiro-institucionais das operações urbanas consorciadas interfederativas e das parcerias público-privadas interfederativas. Particularmente, a OUC interfederativa é o único instrumento do Estatuto da Metrópole acrescido à Lei do Estatuto da Cidade, conforme o artigo 24º: 

A Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 34-A: Art. 34-A. Nas regiões metropolitanas ou nas aglomerações urbanas instituídas por lei complementar estadual, poderão ser realizadas operações urbanas consorciadas interfederativas, aprovadas por leis estaduais específicas (BRASIL, 2015, art. 24º). 

Contudo, não há especificações quanto ao uso do instrumento na definição de uma área de aplicação vinculado ao PDUI e/ou ao macrozoneamento da unidade territorial metropolitana; exemplificando apenas um dos possíveis conflitos de utilização da OUC interfederativa, capaz de reforçar a primazia de atração de investimentos ao município polo e disseminar reflexos desequilibrados no conjunto da região metropolitana.

Apesar das críticas que estamos tecendo, a aprovação do Estatuto da Metrópole nos parece reconhecer a problemática da segregação socioterritorial e da precarização urbana num contexto metropolitano, reafirmando a necessária articulação de políticas públicas para o desenvolvimento urbano-regional. Assim, se entendermos o Estatuto da Metrópole como uma construção de um novo arcabouço jurídico-regulatório orientado ao desenvolvimento urbano-regional, determinadas questões sobre a distribuição desigual dos ônus e bônus da metropolização devem ser aprofundadas para nortear uma agenda mais consistente na efetivação da função social da cidade e da propriedade urbana nessa escala.

Requer-se um olhar para o processo de metropolização (“espaço do problema”) e de institucionalização de aglomerações e regiões metropolitanas (“espaço da ação política”) com recorte de justa distribuição de ônus e bônus da urbanização e no uso dos mecanismos econômico-financeiros que podem tanto permitir a redistribuição social da recuperação da mais-valia como promover a captura exclusivamente privada da mesma. Para alimentar criticamente este debate, o processo de formação da RMC e a OUC-LV serão utilizadas como referência para a análise dos entrelaçamentos socioespaciais e políticos das múltiplas escalas que conformam o urbano-regional. Buscaremos demonstrar com a OUC-LV em Curitiba a polêmica no uso deste instrumento na escala municipal aplicado em um perímetro de dinâmica urbano-regional. 

4. A Região Metropolitana de Curitiba

Na década de 1970, a RMC foi institucionalizada (Lei Federal Complementar n° 14/1973) pelo mesmo processo que formalizou as nove primeiras unidades metropolitanas do país. Contudo, é importante destacar as controvérsias políticas deste reconhecimento, à época não unânime no Estado do Paraná, visto que havia outras centralidades conformando potenciais aglomerações urbano-regionais no estado, com economias dinâmicas e atrativas até então (MOURA; DELGADO; CINTRA, 2014). Moura et al. (2014) apontam, então, para o viés concentrador das políticas estaduais de desenvolvimento econômico e industrial desenvolvimentista – justificadas por argumentos de competitividade econômica – que enquadram a institucionalização da RMC no processo de inserção do Paraná às dinâmicas de divisão social do trabalho da década de 1970. Somadas à instalação massiva de infraestrutura, a conformação da RMC compôs o quadro para a atração de grandes empreendimentos e investimentos na região, promovendo um aumento significativo do estado nas dinâmicas econômicas do Brasil e do exterior, principalmente concentradas no município polo. 

Conformada inicialmente por quatorze municípios, esta formação da RMC foi mantida até a década de 1990, quando ocorreram vários desmembramentos municipais e a região foi sendo ampliada, constituída em 2016 por 29 municípios, figurando uma das maiores unidades metropolitanas em extensão do Brasil. Desde a sua criação, a região sofreu um acelerado crescimento populacional, concentrando 91,70% da população em 4% de sua superfície considerada como área urbana. Atualmente, a região é configurada espacialmente por uma mancha urbana contínua e densa que concentra quase a totalidade da população, denominada Núcleo Urbano Central (NUC) (ver Figura 1), e por áreas urbanas isoladas, contrastantes com as vastas porções de caráter agrícola da unidade, caracterizadas por baixos índices socioeconômicos. 

Entre a década de 1970 e 1990, o crescimento populacional da RMC relaciona-se com um primeiro movimento de industrialização do Paraná, marcado principalmente pela alteração das bases produtivas do estado, de um modelo essencialmente agrícola, modernizando-se para uma estrutura diversificada, com destaque para a indústria e serviços. O contínuo fluxo migratório para a RMC fica evidente ao constatar-se um incremento populacional de 16,36% em 2000, passando a concentrar 30% da população de todo o Paraná, e um incremento de 19,59% nos 28 municípios da RMC ao excluir Curitiba (IPEA, 2013). Destacam-se os municípios de São José dos Pinhais (no qual se localiza o polo automotivo e o Aeroporto Internacional), Colombo, Araucária (polo petroquímico e industrial), Piraquara e Campo Largo, localizados em porções distintas do território (tanto leste, oeste, norte e também sul) e compondo boa parte do NUC. 

A RMC polariza um dos sistemas urbanos no país (MOURA, 2009), influenciando uma rede que extrapola seus limites político-administrativos, alcançando inclusive algumas cidades do Estado de Santa Catarina. Neste cenário, os municípios periféricos ao município polo deveriam participar do processo de planejamento de forma integrada à Curitiba. Porém, identificam-se graves problemas resultantes da desagregação dos municípios, como as disparidades sociais e econômicas e a desproporcional oferta de habitação de qualidade, de infraestrutura, de transporte público e de lazer. É possível evidenciar esta desigualdade pelos valores da taxa de pobreza (renda familiar per capita de até metade do salário mínimo), que em Curitiba é de 8,6% comparada a 21% nos municípios do NUC, atingindo 35% nos demais integrantes da RMC (IPEA, 2013). Cabe lembrar que, ao se tratar de médias percentuais, os valores absolutos de pobreza também se destacam na capital.

É possível abordar brevemente a lógica de periferização presente na RMC a partir da expansão das primeiras aglomerações no entorno de Curitiba. Com o desenvolvimento da região seguindo principalmente os ciclos da economia, a ocupação inicial foi impulsionada pela vinda de imigrantes, que consolidaram a cidade como um centro regional. Com a integração nacional e a criação de uma rede urbana impulsionada pela industrialização em alguns estados a partir da década de 1930, Curitiba, com um crescimento urbano ainda baixo, elabora o primeiro Plano Urbanístico em 1943, de Alfred Agache, no qual previa-se a abertura de largas vias no tecido da cidade e um anel periférico limitador. Em 1966, é elaborado um novo Plano Diretor que sugeria o desenvolvimento linear da cidade em vias estruturais (Sul e Norte), com objetivo de orientar a expansão do crescimento na direção nordeste-sudeste.

Nos anos 1970, ocorre a diversificação e modernização da base agropecuária no Paraná e a introdução de ramos industriais no município polo e adjacentes, acompanhados pelo crescimento populacional de Curitiba nos vetores norte e leste, impulsionado pelo desenvolvimento linear proposto para a cidade. Pretendia-se controlar este aumento populacional por meio do ordenamento do território, com o uso de instrumentos de uso e ocupação do solo, como o zoneamento. Nesta mesma década, foram criados dois órgãos de planejamento para atuarem em diferentes escalas de planejamento: o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e a Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (COMEC), que elaborou o primeiro Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) após a institucionalização da RMC.

O PDI, elaborado pela COMEC, constatava já no final da década de 1970 que os municípios da região metropolitana sofriam um processo de expansão urbana condicionado a fatores físicos, indicando a região oeste como vetor de expansão ao crescimento. Com isso, o plano orientava a expansão de acordo com restrições ambientais, buscando também diminuir os desequilíbrios econômicos, na tentativa de atenuar as disparidades entre os municípios. Indicava para uma concentração dispersa, com a criação de subcentros polarizados para a redistribuição dos efeitos do desenvolvimento, os “bônus” da metropolização, até então concentrados no município polo.

Segundo o plano, a estratégia de ocupação deveria ocorrer em partes distintas do território, de acordo com as condicionantes físicas e ambientais, determinando a área central como de contenção de expansão, ao leste de preservação, ao norte e sul de dinamização rural e ao oeste de promoção industrial e urbana. A intenção era criar uma rede de cidades, com o objetivo de contenção do tecido urbano de Curitiba dentro de seu limite municipal, redistribuindo as funções urbanas do município polo para outros municípios (COMEC, 2006). No entanto, a estratégia regional não contemplava uma distribuição equitativa da população e das atividades econômicas geradoras de renda sobre o território metropolitano, criando tensões entre os proprietários de terras, que visavam a valorização fundiária, e entre as lideranças municipais, que desejavam elevar seu potencial de poder político mediante a ampliação dos contingentes populacionais e da renda econômica em seus limites político-administrativos.

As estratégias do PDI não se efetivaram também devido ao contexto da redemocratização do Estado brasileiro, no qual se formalizou a autonomia dos municípios como entes federados, possibilitando a municipalização de variadas funções de gestão e planejamento territorial. A partir da década de 1990, Curitiba efetivou-se como município atrativo de população e a malha urbana se espalhou para além dos seus limites, Dessa maneira, 

[...] a expansão do núcleo urbano central nos municípios vizinhos a Curitiba processou-se fora do ordenamento previsto no PDI de 1978, sem a implantação das infraestruturas necessárias à formação de um tecido urbano contínuo e estruturado, principalmente no que se refere aos corredores viários e de transportes de passageiros. Além disso, os municípios que receberam elevados contingentes populacionais em curto espaço de tempo não tiveram a correspondente contrapartida do crescimento econômico e das receitas financeiras para fazer frente às demandas por serviços públicos oriundas dessas populações (COMEC, 2006). 

Com a realidade de metropolização da região, Curitiba aprovou uma nova Lei de Zoneamento em 2000, ainda seguindo as premissas do Plano Diretor de 1966. Dentre as novas propostas, estava a criação de um eixo de integração e desenvolvimento metropolitano na BR-116, então de gestão federal (DNER), além de outros novos eixos de adensamento. Previam-se alterações significativas para os bairros atravessados pela rodovia, ocupada até então por estabelecimentos de comércio e serviço ligados ao transporte. Segundo a proposta, este perfil original deveria ser alterado para tornar-se um eixo integrador metropolitano, através da implantação de sistema de transporte de grande capacidade e a diversificação de usos (PMC, 2000). Permitia a construção de edifícios comerciais e residenciais com até 12 pavimentos e com altura livre nas zonas polos, onde se localizariam as estações do transporte público. Uma nova lei alterou o instrumento do solo criado, antes somente vinculado ao Fundo Municipal de Educação, que passou a ser utilizado igualmente para a preservação de áreas verdes, ampliando o mecanismo de transferência de potencial construtivo. 

Em adequação ao Estatuto da Cidade, o IPPUC elaborou um novo plano diretor para Curitiba em 2004, com as premissas de considerar a realidade específica do município e promover uma intervenção no ordenamento territorial com mais autonomia. Novos instrumentos foram incorporados aos já então utilizados pelo município – como o Solo Criado e a Transferência do Direito de Construir – agregando-se a Operações Urbana Consorciada às práticas de planejamento urbano.

No mesmo período, a COMEC elaborou um documento de Gestão do Sistema Viário, identificando formalmente as vias que exerciam funções metropolitanas na RMC, propondo a função de vetores de expansão regional para estas estruturas viárias. A BR-116 (caracterizada posteriormente como Linha Verde) foi classificada como uma via de integração metropolitana, já que abrigava prioritariamente o tráfego de longa distância intra-metrópole e tráfegos do tipo interno-externo e externo-interno – deslocamentos de entrada e saída da metrópole – apresentando continuidade com o sistema de vias expressas. Nesta classificação, propôs também diretrizes para cada categoria viária: como se dariam os acessos, de que forma seriam as interseções e qual a distância entre estas; geometria e velocidades desejadas; a capacidade para o escoamento; estacionamentos; além de indicar a necessidade de projetos específicos para o transporte coletivo e uso do solo das mesmas (COMEC, 2010). Ainda segundo este documento, dada a importância do sistema viário como elemento de conexão, este deveria ser gerido através de um modelo que contemplasse a pluralidade institucional existente e a diversidade funcional de seu uso, em um sistema de integração que permitisse a ação conjunta de variados órgãos públicos e diversos municípios, evitando-se que visões parciais de segmentos da administração ou de algum município privilegiassem uma determinada função viária em detrimento das outras. 

As proposições da COMEC, tanto do PDI como do documento de Gestão do Sistema Viário não foram consolidadas e se mantiveram apenas como estudos e projetos. Contudo, podemos supor que influenciaram, de certa forma, o projeto da OUC-LV, na antiga BR-116, elaborado pelo município de Curitiba com a utilização do instrumento previsto no plano diretor de 2004. Neste eixo, que atravessa o município polo da RMC de norte a sul em quase sua totalidade e se conecta com a rede viária metropolitana (Figura 2), foi proposta uma intervenção em escala somente municipal (a partir de uma decisão política formulada apenas nesta escala), desconsiderando as dinâmicas urbanos-regionais. 

5. Operação Urbana Consorciada Linha Verde, Curitiba

Após a vigência de mais de 35 anos, a Lei do Plano Diretor de Curitiba de 1966 passou por uma revisão em 2004 para se adequar ao Estatuto da Cidade; porém, a Lei de Zoneamento de 1975, que havia sido recentemente alterada no ano de 2000, sofreu poucas alterações. Esta revisão do plano foi necessária para regulamentar alguns instrumentos de gestão previstos no Estatuto da Cidade, além de buscar a flexibilização de alguns conceitos. Incorporou a Operação Urbana Consorciada, de aplicação relativamente nova no país e até então inexistente na cidade.

A criação da OUC-LV se insere neste contexto. O projeto localizava-se ao longo do eixo da antiga BR-116, rodovia federal inaugurada ainda na década de 1960, atravessando 22 bairros da capital no sentido norte-sul. Com a conclusão do Contorno Viário Leste em 2002, os fluxos rodoviários foram deslocados com o desvio do tráfego intenso de caminhões e transporte de cargas e passageiros do perímetro urbano da BR-116, que passou a comportar somente fluxos diários de transportes municipais e metropolitanos.

Ao considerarmos a importância do eixo nestes fluxos, a Linha Verde pode ser entendida como um Eixo Estrutural de ligação em massa (semelhante aos outros Eixos já existentes em Curitiba que vinculam transporte público, vias de alta capacidade de tráfego, concentração de equipamentos públicos e densificação da ocupação através da verticalização) de sentido norte-sul, que atravessa quase todo perímetro da cidade nesta extensão e conecta-se em nós com importantes eixos viários (Figura 2). Estes nós se caracterizam por pontos de ligações da antiga BR-116 com outras vias de relevância que se direcionam a diversos municípios da RMC: Colombo, Quatro Barras, Campina Grande do Sul, Pinhais, Piraquara, São José dos Pinhais e Fazenda Rio Grande; também conecta-se ao Contorno Norte, sentido São Paulo; ao Contorno Sul, com a BR-376, sentido Santa Catarina; com a BR-277, que segue para o litoral do Paraná; além da ligação com eixos estruturais de Curitiba.

A implantação do instrumento OUC-LV foi elaborada com o objetivo de recuperar antigas zonas da cidade de Curitiba, consideradas de localização privilegiada mas que perderam ou tiveram suas funções subutilizadas; locais caracterizados por grandes terrenos principalmente de usos industriais e de baixíssima densidade. Para aplicação da operação, a administração da via foi transferida do governo do estado para o município, que além de modificações viárias, propôs novos parâmetros para o uso do solo, alterando o zoneamento e as permissões construtivas. Emitiram-se títulos, os Certificados de Potencial Construtivo (CEPACs), que vendidos em leilões na bolsa de valores, permitem aos compradores adquirir potencial construtivo para edificar acima dos parâmetros estabelecidos em lei. Na OUC-LV foi prevista a emissão em etapas de 4,83 milhões CEPACs ao longo da vigência de 25 a 30 anos da operação, que equivaleriam a R$ 1,2 bilhão, a serem utilizados nas intervenções urbanísticas da área. Estes títulos foram estabelecidos com lastro no potencial de 4,47 milhões de metros quadrados de área adicional de construção, que dependem do interesse de mercado para sua comercialização.

Na fase de análise dos impactos do projeto, o eixo viário foi caracterizado como indutor de crescimento, conforme as premissas já elaboradas anteriormente pelo PDI: “Cabe destacar que, a ocupação urbana e o adensamento populacional metropolitano evidenciam a antiga rodovia federal BR-116, atual Linha Verde, como a conexão diametral mais importante em relação à capital, configurando-se como seu principal eixo de desenvolvimento” (FIPE; IPPUC, 2012). Porém, na elaboração das diretrizes e ações do projeto, não foram considerados os impactos metropolitanos, definindo-se o perímetro de aplicação do instrumento apenas no município de Curitiba. 

A análise a partir da valorização do custo da terra nos bairros do perímetro da OUC-LV nos auxilia a avançar essa discussão. Em estudo comparativo do preço de oferta de terrenos desocupados ou subutilizados em Curitiba (GAVRILOFF, 2013), em um período de 12 anos, mostrou que inicialmente no ano 2000, os valores cresciam gradativamente de forma radial a partir do centro da cidade e também eram elevados ao longo das Vias Estruturais, locais de maior adensamento. Os valores mais baixos se encontravam nos bairros periféricos, dinâmica em que a Linha Verde se inseria. Com a revisão do Plano Diretor, em 2004, mantiveram-se as zonas e parâmetros construtivos no local da Linha Verde, permanecendo a valorização da terra pela mesma lógica radial anterior, mostrando um crescimento lento e constante em todo município. No decorrer dos anos seguintes, a nova dinâmica do mercado imobiliário no Brasil, ocasionada por diversos fatores, dentre eles o aquecimento da economia da construção civil e o maior acesso ao crédito imobiliário, contribuíram para o encarecimento dos preços dos imóveis de uma maneira geral; tendência acompanhada por Curitiba na elevação dos valores em todo o município.

A comparação de dados a partir de 2008, com obras públicas já em andamento na Linha Verde, permitiram verificar a elevação dos preços em toda a cidade, porém com acréscimo nos bairros no seu entorno, antes inseridos numa dinâmica de valorização radial. A partir de 2012, com a aprovação da OUC-LV alterando os parâmetros construtivos do local e propondo diversas obras de reestruturação do espaço, percebe-se que a valorização dos bairros ao longo da Linha Verde, passam a acompanhar uma dinâmica semelhante à das vias estruturais – locais de adensamento e de interesse do mercado imobiliário. Apesar dos valores mais elevados permanecerem no perímetro radial a partir do centro de Curitiba e na extensão dos eixos estruturais já consolidados, ocorreu um acréscimo gradativo ao longo da Linha Verde, maior que a dinâmica dos bairros periféricos. A alteração da configuração espacial do local, ao criar um eixo de valor para o mercado imobiliário neste perímetro, também impactou na produção espacial dos municípios limítrofes, que não acompanharam a dinamização do valor da terra produzido.

Nos eixos estruturais implantados em Curitiba desde a década de 1970, através das políticas públicas, atribuiu-se valores suplementares a espaços já valorizados, formando um estoque para a expansão seletiva do centro da cidade, qualificando os espaços de maneira desigual com investimentos públicos. As transformações na BR-116 para a conformação de um novo eixo estrutural, que antes estava excluída da dinâmica de valorização elevada da terra urbana da estrutura dos eixos estruturais, alteraram também sua produção espacial, aproximando-a da lógica dos demais eixos. O projeto da Linha Verde, que poderia ser um elemento articulador da integração dos espaços historicamente excluídos no município polo e na RMC, deslocou as fronteiras de ocupação de Curitiba para atender as necessidades de novos empreendimentos em manter a cidade como núcleo atrativo de investimentos. Afastou as classes mais populares, que não teriam acesso à terra valorizada, para os municípios vizinhos e se tornou um novo estoque de espaço para ser ocupado pela população organicamente integrada (SOUZA, 2001).

Portanto, verifica-se que a OUC-LV se enquadra na lógica de produção espacial de exclusão. Ao se elaborarem normas de uso e ocupação do solo municipal que resultam na elevação do custo da terra, criam-se condições para a reprodução das desigualdades socioespaciais, pois adicionando valor através da nova infraestrutura, os espaços se tornam de interesse dos promotores imobiliá­rios e afastam determinadas classes da população. Na própria formulação do instrumento, em que os valores arrecadados só podem ser aplicados na mesma área de implantação do projeto, beneficia-se apenas os que estão inseridos nas áreas delimitadas da operação. Assim, apenas na teoria e no discurso da OUC-LV, a compra de potencial para a construção poderia gerar recursos para a promoção de ações de inclusão da população, por exemplo, através de zoneamento de interesse social, requalificando as áreas degradadas e subutilizadas mas permitindo a permanência dos habitantes do perímetro; ou seja, recuperando a mais-valia em benefício do interesse coletivo e da concretização da função social da cidade e da propriedade.

Na escala metropolitana, é possível verificar que ao se implantar esse tipo de instrumento de forma “municipalizada” em contextos de dinâmica urbano-regional, o resultado foi um acréscimo no valor fundiário pela infraestrutura implantada, que é recuperado apenas no perímetro do município polo, mas gerando impactos na dinâmica de uso e ocupação do solo que extrapolam seus limites. Desta forma, cria-se um estoque de áreas para a expansão da especulação imobiliária que, ao contrário de recuperar a mais-valia produzida, localiza o “bônus” da urbanização em um perímetro especifico e desloca os “ônus” para os municípios periféricos, principalmente os contíguos ao polo. Portanto, entende-se que a utilização da OUC na Linha Verde como forma de criar um eixo de conexão metropolitano deveria beneficiar mais do que somente os promotores imobiliários e atrair recursos para Curitiba, mas também a população inserida em um contexto urbano-regional, exigindo uma gestão interfederativa do instrumento, como possibilitado pelo Estatuto da Metrópole a partir de 2015 – recomendação proposta pela COMEC no documento de Gestão do Sistema Viário já na década anterior ao estabelecimento da operação.

Além da utilização de instrumentos de planejamento urbano de forma municipalista, desvinculados das dinâmicas urbano-regionais, persistem dificuldades de outras ordens para as políticas metropolitanas no “espaço da ação política”, e que reforçam a necessária coerência com o “espaço do problema”. Um exemplo que beira ao “trágico-cômico” das disputas políticas entre agentes que conformam a gestão metropolitana nas distintas esferas municipal e estadual, foi o desmonte ocorrido na chamada Rede Integrada de Transportes da Região Metropolitana de Curitiba (RIT) em 2015. Em funcionamento desde a década de 1980, quando a Urbanização Curitiba S.A. (URBS) assumiu a gerência do sistema de transporte como concessionária das linhas e empresas privadas que operavam como permissionárias, a remuneração dos serviços alterou-se de valor por passageiro para o valor por quilômetro rodado. Neste período, implantou-se a tarifa única, com os percursos mais curtos subsidiando os mais longos, sendo possível aos usuários utilizarem os terminais de integração metropolitana e as estações “tubo” (transporte modal que utiliza canaletas expressas) para a troca de linhas com o pagamento de apenas uma tarifa. Em 2015, a COMEC não renovou o convênio da rede, decretando o fim da integração metropolitana, pelo não acordo e, consequentemente, suspensão no valor de repasses do governo do Estado do Paraná para cobrir a chamada tarifa técnica da RIT.

Tendo em vista que é o estado-membro que viabiliza o funcionamento de determinadas políticas intermunicipais numa região metropolitana, a proposta do então governador do Estado do Paraná para o prefeito de Curitiba era dividir o valor do repasse meio a meio, proposta recusada pelo segundo, que alegava que a tarifa técnica municipal era inferior aos valores dos percursos metropolitanos. Com isso, diversas linhas foram desativadas, outras encurtadas e algumas divididas, operando entre as bordas do município polo, sendo necessária a troca de sistema para percorrer todo o trajeto (e, portanto o pagamento duplicado da passagem). Vale destacar que ambos agentes eram de partidos políticos de oposição um ao outro – Carlos Alberto Richa como governador do Estado (PSDB) e Gustavo Bonato Fruet (PDT), prefeito de Curitiba que se candidataria a reeleição da prefeitura em 2016. No ano de 2017, com a troca da gestão municipal, assume o prefeito Rafael Greca, da coligação do governo do Estado, que então renovou os convênios de repasse da tarifa técnica, possibilitando a retomada da integração metropolitana de transporte público. Parece-nos evidente a parcialidade das políticas governamentais, que seguem interesses de determinados grupos, e não uma política metropolitana que de fato busque atender as demandas e necessidades da população. 

6. Considerações finais

A função social da cidade e da propriedade, ao fundamentarem a ordem urbanística brasileira, desempenham papel argumentativo, ainda que não expressos diretamente em qualquer enunciado nos planos objeto de que tratam (SOARES; FERES, 2007). Portanto, ambos os princípios são implícitos ao ordenamento urbano e regional, não estando restritos apenas aos planos diretores, pois também são argumentativos aos Planos de Desenvolvimento Urbano Integrado e na utilização de instrumentos de planejamento por uma governança interfederativa. Este entendimento nos permite expandir o questionamento sobre a gestão social de valorização da terra para além da escala municipal. Para mais, nos permite questionar os limites de efetivação da função social da cidade e da propriedade, tal como regulada pelo plano diretor, dado que o “espaço do problema” do ônus e bônus da urbanização metropolitana é de dimensão urbano-regional. 

A partir do exemplo da implementação da OUC-LV, percebe-se que o agenciamento da escala metropolitana pelo processo atual de acumulação e reprodução do capital reforça a centralidade já existente do município polo – que atrai os grandes investimentos de capital e infraestrutura – e, ao desconsiderar a dinâmica metropolitana na recuperação de mais-valia, grosso modo, acentua a reprodução da desigualdade socioespacial urbano-regional, deslocando a população com menor possibilidade de se manter na zona revalorizada para os municípios limítrofes, que já contam com a desigual distribuição de serviços públicos e recolhimento de menor receita para o desenvolvimento de políticas urbanas inclusivas. Esta lógica é descrita por Franzoni (2015), como uma que “[…] reforça a compreensão da escala metropolitana como o lugar da verticalização (centralidade – periferia), ao invés da horizontalidade (multiplicação das centralidades)”.

Institucionalmente, permanece um hiato entre o que chamamos de escala metropolitana e o processo de planejamento e ordenamento territorial, assim como um esvaziamento de estratégias e instrumentos de controle do uso e ocupação do solo e de recuperação da mais-valia de dimensão urbano-regional. Cenário inefetivo que o Estatuto da Metrópole não aparenta desembaraçar, uma vez que a ação política metropolitana permanece refém da autonomia municipal, das disputas de projetos políticos e da complexidade inerente à articulação de ações interfederativas, reguladas em um espaço de ação política dos estados-membro, via leis estaduais. 

Salientamos que, ainda que as contradições do ordenamento jurídico urbano-regional sejam evidentes – como buscamos demonstrar – o possível equilíbrio dos projetos em disputa na escala metropolitana se encontram, atualmente, mais no campo propriamente político da ação municipal e estadual do que apenas na dimensão jurídico-regulatória. Os arranjos urbano-regionais, entendidos como lócus da reprodução da desigualdade socioespacial, apontam para a necessidade efetiva do ordenamento territorial nessa escala, em contestação à concentração de ações municipais – que intensificam a implementação de medidas urbanísticas de valorização fundiária – e das decisões estaduais – imersas na arena de disputas de projetos políticos dos agentes que ocupam estas esferas. 

Defendemos aqui que ao se adotar a dimensão urbano-regional como o “espaço do problema” da desigualdade socioespacial, a justa distribuição do ônus e bônus da urbanização deve também reescalonar-se para o “espaço da ação política”. A reflexão apresentada buscou demonstrar os desafios do planejamento urbano-regional à luz da gestão social da valorização da terra. Parece-nos que uma possível reversão da lógica de exclusão da metropolização contemporânea deverá transitar por novas propostas de arranjo institucional de poder que atendam às demandas metropolitanas, em um sistema de gestão regional efetivamente integrado e instrumentalizado para tal. Faz-se necessário aprofundarmos as lacunas institucionais e instrumentais nos dispositivos que já temos disponíveis para o planejamento metropolitano, assim como, criativamente, imaginar outros para a cogestão do planejamento e a cogestão social da valorização da terra de dimensão urbano-regional. 

Figura 1 – Núcleo urbano da Região Metropolitana de Curitiba

Figura 1 – Núcleo urbano da Região Metropolitana de Curitiba

Fonte: COMEC, 2006 (modificado pelas autoras).

 

Figura 2 – Delimitação da Linha Verde no sistema viário da RMC e conexões metropolitanas

Figura 2 – Delimitação da Linha Verde no sistema viário da RMC e conexões metropolitanas

Fonte: COMEC, 2000 (modificado pelas autoras). 

 

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