Ambiente político e tecido social no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Território Mato Grande (RN)


Joana Teresa Vaz de Moura
Professora do Departamento de Políticas Públicas da Universidade federal do Rio Grande do Norte

1     Introdução

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem como um de seus objetivos estabelecer um diálogo permanente entre o poder público e a sociedade civil, especificamente no que se refere à compra e distribuição da merenda escolar. O desenho institucional do programa prevê a criação de espaços de diálogo entre sociedade e Estado, a fim de que exista uma relação direta entre os gestores públicos e sociedade, consolidando, assim, a ideia da participação social. Os Conselhos de Alimentação Escolar (CAEs) são uma chave essencial para a eficácia de tal política pública. 
Afirmações de que “O Conselho de Alimentação Escolar – CAE – é uma tragédia” ou “O CAE caiu” motivaram uma investigação a respeito do funcionamento desse programa e, especialmente, de seu mecanismo institucional de participação política. Soma-se a isso o fato de ter sido identificado que, em diversos municípios do Território Mato Grande, RN, os arranjos institucionais locais que dão suporte à política são completamente diferentes. 
Se os CAEs não estão atuando como foram pensados, onde se dão as relações entre sociedade e poder público na discussão e acompanhamento da política? Para responder a tal questão, é necessário considerar que estão em jogo tanto a representação política da sociedade, sobretudo de seus beneficiários, quanto a falta de empenho dos governantes na promoção de um espaço legitimado para a dinâmica participativa da sociedade brasileira, como os conselhos gestores de políticas públicas. 
O objetivo deste artigo é analisar o ambiente político e o tecido social que sustenta o PNAE no âmbito local. Intenta-se apresentar o contexto estrutural da política pública e analisar as práticas políticas e as relações interpessoais, fazendo, para tanto, uso das ideias da sociologia relacional, que fornece elementos interessantes para se pensar as relações do Estado com a sociedade civil. 
Para essa perspectiva analítica, “o real é relacional” (Bourdieu, 1989, p.28); nesse sentido, para dar conta de um fenômeno em particular, deve-se pôr em evidência as inter-relações existentes entre vários outros fatores, tais como: arranjo institucional, diversidade dos atores sociais e políticos, jogos de poder, percepção política. 
Por serem instrumentos de opacidade, as políticas públicas são objetivadas nas regras de apropriação e redistribuição de recursos públicos (Neves, 1995). A análise delas deve incorporar os diferentes contextos e a capacidade de os agentes que estão em jogo se apresentarem como portadores ou não de intenções de cooperação ou de terem habilidade para promover essas cooperações (Flingstein, 2001).
Uma de nossas inquietações é compreender por que uma mesma política pública, no caso o PNAE (mesmas regras, mesma construção institucional no nível federal), na prática, funciona de maneira tão diversa e com características específicas em cada um dos municípios analisados. Nisso, está em questão, dentre outros elementos, o que Offe (1984) chama de “suposta neutralidade”. Dadas as características culturais, históricas e socioeconômicas de cada realidade, a prática política se diferencia, inclusive nas disputas nos e pelos espaços de participação social. A maneira como esses espaços são formalmente pensados não levam em conta a questão do poder, entendido como algo inerente às relações sociais. No final deste artigo, são questionados os espaços de controle social criados pelas políticas públicas, como os conselhos, que deveriam ser centrais para aprimorar e aproximar as relações entre Estado e sociedade.
A primeira hipótese que se busca trabalhar aqui se refere à importância do associativismo, pois, como será demonstrado, quanto maior a organização do tecido associativo no município melhor o desempenho institucional. Existe uma correlação significativa entre o grau de confiança geral e as normas de cooperação prevalecentes na sociedade com os avanços no desenvolvimento local. O fortalecimento e a mobilização de associações e cooperativas podem exercer um papel importante nas políticas e projetos que visam a superar o estado de pobreza e a integração de populações marginalizadas e excluídas.
A segunda hipótese se concerne ao fato de que os espaços participativos não passam de aparatos meramente formais para referendar as decisões tomadas no âmbito das Secretarias de Estado, legitimando, por um lado, determinados atores e, por outro, enfraquecendo a rede de relações entre sociedade e Estado.
Os dados deste artigo são oriundos de algumas pesquisas realizadas durante os anos de 2011 a 2013, das quais a autora fez parte e que se referem ao PNAE1 e aos espaços de participação social no Território Mato Grande, por exemplo os Conselhos de Alimentação Escolar e o Colegiado Territorial2. 
A pesquisa relacionada ao PNAE envolveu a percepção dos gestores públicos (Secretários de Educação e Agricultura), dos agricultores familiares, das merendeiras, das nutricionistas, dos técnicos extensionistas e dos diretores das escolas públicas de cinco municípios do Mato Grande: Ceará-Mirim, Touros, João Câmara, Poço Branco e Maxaranguape. A escolha desses municípios como focos centrais justifica-se pelo número considerável de agricultores familiares que fornecem seus produtos para o PNAE. As outras pesquisas focaram na atuação das organizações representantes dos agricultores familiares e do poder público nos espaços de participação social.     
Utilizaram-se dados referentes aos questionários aplicados a 46 agricultores familiares e às entrevistas semiestruturadas feitas com as nutricionistas, os gestores municipais e os representantes dos CAEs dos cinco municípios.
O artigo está estruturado em três partes, além desta introdução e da breve consideração final. Na primeira, são conceituadas as categorias analíticas relevantes para a apreensão do objeto empírico. Discutem-se questões relacionadas aos arranjos institucionais e às relações sociais, baseadas na abordagem da sociologia relacional, intentando compreender as mediações entre as estruturas do Estado e os diversos atores sociais. Num segundo momento, apresenta-se a política em si e a maneira como ela se estrutura no território e nos municípios analisados. Na terceira parte, apresentam-se os fatores relevantes para o entendimento da operacionalização da política na prática – o arranjo institucional e o associativismo –, identificando os principais atores e a maneira de interação entre eles, bem como os desafios e os limites do PNAE. 

2     Política pública: arranjos institucionais e as relações sociais
O entendimento de uma política pública requer construir um referencial teórico que consiga abarcar o aparato estatal e a densidade associativa. Com isso, é possível averiguar os efeitos dos diversos interesses consolidados na construção dos arranjos institucionais.
Entende-se por políticas públicas o ato de “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente) (Souza, 2006, p. 26).
Souza (2006) afirma que as políticas públicas, mesmo assumindo uma visão holística, devem ser entendidas como um somatório de diversas partes: instituições, indivíduos, interações, ideologias e interesses. Nessa combinação, as relações entre as partes são fatores-chave para a explicação das causalidades. 
De acordo com Meny e Thoenigh (1992), em geral, as políticas públicas organizam-se em torno das seguintes características: a) um conteúdo, ou seja, o discurso ou as proposições mobilizadas para gerar resultados ou produtos; b) um programa, em que se explicitam os eixos de atuação, o setor de intervenções e o problema a que se referem; c) uma orientação normativa, na qual se identificam os principais valores mobilizados e os objetivos específicos; d) um fator de coerção, isto é, a legitimidade da autoridade legal do poder público que se impõe à coletividade; e) uma competência social, que diz respeito ao público, aos indivíduos, a grupos ou a instituições que compõem o campo de uma ação governamental determinada.
Pinto (1986) acrescenta que o processo de implementação de uma política pública é influenciado por jogos políticos e também por conflitos de caráter burocrático. Existem, assim, acidentes ou acontecimentos que podem modificar a dinâmica de um programa. Como pontua a autora:

A realidade social não responde de forma tão sistemática ou linear como supõe o plano. O resultado de um programa é alterado por situações contextuais cuja dinâmica não é de todo conhecida ou manipulável (PINTO, 1986, p. 78). 

Para Saravia (2006), as instituições estatais têm papel fundamental na implementação de uma política, pois suas estruturas, seus quadros e sua cultura organizacional são elementos que a configuram. Nessa acepção, é-se realçado o caráter institucional preponderante na análise de políticas públicas. O autor não deixa de enfatizar, entretanto, a necessidade de perceber os processos que formatam a realidade empírica analisada.
 Pelo que se nota desde já, uma abordagem relacional permite a compreensão da construção de novos comportamentos para os agentes, daí a pergunta: que ambiente é esse que se configura diferentemente em cada local, seja ele receptivo ou não? Essa perspectiva ainda fornece pistas interessantes para analisar as relações entre os atores sociais e o poder público. 
Na visão de Kuschnir (2007), a sociedade é heterogênea, formada por redes sociais que sustentam e possibilitam múltiplas percepções da realidade. Essas redes também se constituem como campos de possibilidades de ação. Nesse cenário, conforme afirma Bourdieu (1989), Estado e sociedade civil tornam-se espaços de disputa estruturados a partir de relações de poder mais ou menos simétricas, nos quais estão envolvidos diversos atores, orientações, objetivos e interesses (BOURDIEU, 1989; SILVA, 2006).
Bourdieu (1989) sustenta que as lutas políticas ocorrem num campo estruturado e estruturante, constituído como campo de forças relacional, cujo eixo de relações se dá, numa dimensão, entre dominantes e dominados e, noutra, entre mandantes e mandatários (e destes com suas organizações), todos posicionados diferencialmente em relação aos instrumentos de produção de representações legítimas do mundo social. No campo político, é por meio da concorrência direta entre os agentes que são gerados “produtos políticos” (problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos) que os cidadãos comuns devem “escolher”, de tal maneira que a vida política pode ser descrita como um mercado de bens regido pela lógica da oferta e da procura. 
O espaço de relação entre organizações da sociedade civil e Estado é entendido aqui pelo conceito de “campo”. Este permite que a análise escape do equívoco de tratar representantes da sociedade civil e do Estado como “personagens” homogê­neos e unificados que orientam suas ações em direção a um sentido pré-determinado, deduzido, por vezes, de algum modelo teórico normativo. Em vez disso, pelo conceito de campo, tanto Estado quanto agricultores familiares tornam-se agentes de espaços de disputa, estruturados a partir de relações de poder mais ou menos simétricas, em que estão envolvidos, juntamente dos primeiros, diversos atores, orientações, objetivos e interesses (BOURDIEU, 1989; SILVA, 2006). Com base nessa acepção, as relações sociais vão se tornando cada vez mais complexas e, por consequência, a compreensão de “como o campo político e os atores da sociedade civil se constituem mutuamente e mediante processos que (...) vão moldando e vão sendo moldados pelas diferentes instituições e atores políticos existentes” torna-se fundamental (LAVALLE, 2012, p. XVIII).
Baiocchi e Corrado (2010) mostram que para analisar essa heterogeneidade, mais que um simples entendimento do funcionamento das organizações sociais, é preciso observar como elas estão posicionadas na estrutura social, atentando para as relações com os espaços formais públicos e com as instâncias institucionais nos quais as políticas são pensadas e executadas. Pode-se afirmar, então, que as formas como os atores sociais estão inseridos e posicionados nas diferentes redes associativas refletem a ação política. 
Evans (1998) assume que as ações do Estado e suas consequências são contingentes ao contexto, no sentido de que as decisões dos agentes dependem dos complexos contextos institucionais em que estão imersas, com interações enraizadas historicamente e incorporadas pelos indivíduos. O autor também ressalta a importância de uma sinergia público-privada: redes de engajamento cívico podem e, em alguns casos, devem ser patrocinadas pelo Estado. Essa perspectiva ratifica a necessidade de um Estado forte, capaz de promover ações que também fortaleçam o associativismo.
Desse modo, as relações entre sociedade civil e Estado podem ser percebidas quando este último é influenciado pelas ações de organizações da sociedade civil, como as pressões exercidas por movimentos sociais para que o Estado ofereça respostas aos problemas sociais e políticos por meio de políticas públicas específicas (caso das cotas para negros em universidades públicas federais ou da Lei Maria da Penha), ou quando as próprias organizações da sociedade civil são mobilizadas por influências do poder público, conforme salienta Abers (2000). 
Um dos argumentos favoráveis à parceria público-privado é que ela é importante não apenas para promover políticas mais eficientes, mas também para dar poder a grupos tradicionalmente excluídos do processo de tomada de decisão no governo (ABERS, 1998). Em consonância com esse argumento, Baldassari e Diani (2007) pontuam que o contexto político tem um impacto relevante sobre a vida associativa, especialmente no potencial de as organizações civis operarem como arenas públicas de discussão, mediação e deliberação. Segundo esses autores, as organizações sociais fazem parte de uma rede de relações; para entender como operam, não basta manter o foco nelas mesmas, mas em todo o contexto relacional que as envolve, principalmente o político. 
Fligstein (2001) baseia-se no conceito de campo de Bourdieu para repensar a cooperação entre atores sociais. Pare ele, os atores formadores de uma determinada organização devem ter habilidade social (social skill) para fazer com que os demais atores envolvidos na rede cooperem. Ainda que todos os seres humanos tenham determinada habilidade social em virtude de suas participações em grupos, alguns atores são socialmente mais habilidosos para fazer que outros cooperem, bem como para realizar manobras em torno de atores poderosos no intuito de construir coalizões políticas (FLIGSTEIN, 2001, p. 107).
O interessante da abordagem de Neil Flingstein é que ela aponta para o fato de que os atores não são meros reprodutores das estruturas sociais em que estão inseridos, pelo contrário, são capazes de modificar a relação de forças e poder instaurada em determinados campos. Assim, torna-se essencial compreender tanto a maneira como os atores se inserem em certas realidades quanto como adquirem o poder de alterar as relações de forças de um campo (ABRAMOVAY, 2007). 
Observa-se que essas perspectivas esforçam-se analiticamente para entender o espaço da política institucional e suas relações com a sociedade civil, sobretudo os condicionantes institucionais na ação dos diversos atores sociais. Reforça-se, concernente ao tema do artigo, por exemplo, a necessidade de entendimento da emergência de um diálogo permanente entre agricultores familiares e políticas públicas de acesso a mercados institucionais, como o PAA e o PNAE. Wilkinson (2008) destaca que esse tipo de política favorece uma nova aprendizagem, na qual o Estado desempenha um papel fundamental no fomento de novas práticas, na constituição de relações mais horizontalizadas e no apoio logístico a agricultores familiares. Essa inserção ou capacidade possibilita a superação de outras dificuldades, como dos altos níveis de analfabetismo, especialmente em um contexto que premia novos conhecimentos e a compreensão do funcionamento das estruturas burocráticas, cada vez mais complexas. 
Políticas públicas como o PAA e PNAE são importantes “indutores de possibilidades”. Nelas, o posterior acesso e/ou a conquista de um espaço no mercado por milhões de agricultores familiares, historicamente excluídos do mercado formal, podem significar a sua reprodução (econômica e social). Os agricultores familiares vêm tentando afirmar-se como sujeitos de direitos e também como atores de um processo de desenvolvimento, a fim de que sejam vistos, realmente, como peças importantes nas negociações sobre o acesso a mercados e na construção de alternativas de desenvolvimento rural.

3     O Programa Nacional de Alimentação Escolar:                     a política e seus arranjos
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é um programa federal que objetiva, por meio do repasse de recursos financeiros, a oferta, em caráter suplementar, de alimentação para alunos da rede pública de educação básica, incluindo aqueles que estão matriculados nas escolas localizadas em áreas indígenas e de remanescentes de quilombos, contanto que tenham participado do censo escolar realizado pelo Instituo Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Mais conhecido como Merenda Escolar, o programa é gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Por ele, são transferidos recursos financeiros aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios para que sejam supridas, parcialmente, as necessidades nutricionais dos alunos (FNDE, 2012).
A alimentação escolar torna-se um direito com a Constituição de 1988. Como postula o Artigo 208, parágrafo VII, o Estado deve garantir, por meio de programas suplementares à educação, o atendimento ao aluno com material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
Em 1994, o PNAE foi descentralizado. A Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura e responsável pelo PNAE, estabeleceu, então, convênios com estados e municípios para o repasse de recursos financeiros. Ficaram a cargo dos estados e municípios a elaboração do cardápio, a aquisição de alimentos, realização do controle de qualidade, a contratação de recursos humanos necessários (merendeiras, nutricionistas) e manutenção de uma infraestrutura física adequada (equipamentos e utensílios de cozinha). Os recursos repassados pela FAE deveriam ser destinados exclusivamente à aquisição de alimentos; as demais despesas seriam a contrapartida de estados e municípios (BELIK; CHAIM, 2009)
Outra grande conquista foi a instituição, em cada município brasileiro, do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) como órgão deliberativo, fiscalizador e de assessoramento para a execução do programa. Isso se deu pela reedição da MP nº 1.784/98, em 2 de junho de 2000 (FNDE, 2012).
De acordo com o portal do FNDE, o CAE é um órgão colegiado deliberativo, fiscalizador e de assessoramento do PNAE, sendo uma das condicionalidades para que o município possa aderir ao programa. Dentre os órgãos de fiscalização presentes no programa, é a instância mais próxima da sociedade civil, visto que a comunidade pode participar de suas reuniões e, assim, acompanhar mais de perto a execução e ações do programa, com a possibilidade de pôr os problemas e falhas do PNAE em seu município e/ou escola, de modo a fortalecer o controle social e, por conseguinte, a fiscalização dos repasses de recursos do FNDE. Ainda segundo informações do site do FNDE, os CAEs devem ser formados por membros da comunidade, professores, pais de alunos e representantes dos poderes Executivo e Legislativo. Eles são, portanto, o espaço institucional formalizado de relação entre Estado e sociedade no âmbito do PNAE.
Em 2009, houve um avanço importante no programa: determinou-se que no mínimo 30% de produtos comprados para a merenda escolar deveriam advir dos agricultores familiares da região, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas (FNDE, 2012). Algumas das implicações dessa obrigatoriedade necessitam ser aqui registradas. A primeira delas se refere ao papel do Estado. Este, ao figurar como um importante mediador, tem garantido um “mercado institucional” para agricultores familiares que, como demonstra uma série de estudos, sempre tiveram problemas com a comercialização. A segunda está associada à necessidade de articulação de tais agricultores, a fim de que possam participar, como sujeitos de direitos e atores essenciais para o desenvolvimento rural, dos CAEs e/ou dialogar diretamente com o PNAE. Por fim, a terceira implicação liga-se à discussão sobre segurança alimentar, tão presente no debate atual das políticas públicas. Nota-se que Estado vem sensibilizando-se com a questão da alimentação para além do escopo da fome. O PNAE, por exemplo, procura assegurar a qualidade nutricional e, consequentemente, a saúde de seus beneficiários. Um detalhe importante é que a própria postura dos agricultores em relação à alimentação tende a mudar a partir do momento em que começam a comercializar seus produtos para o programa3. Esses fatores reforçam a necessidade de se pensar os arranjos institucionais que permitem a operacionalização da política na prática, estando nisso incluídos os atores e os espaços responsáveis por sua efetivação, os valores, os interesses, as normas e regras.
Tendo em vista o cenário mais amplo de atuação do PNAE, uma questão precisa ser feita: com a transformação dos agricultores em atores centrais da nova perspectiva política de alimentação e com a criação de novos arranjos institucionais (conselhos de alimentação escolar, por exemplo), como os municípios, através de suas gestões públicas, são reconfigurados por essas relações e, ademais, como as pensam? Para tentar respondê-la, será analisado o caso de Mato Grande. No próximo item, apresenta-se, primeiramente, uma resumida contextualização desse território e dos municípios escolhidos como foco da pesquisa. Em seguida, é-se detalhado o desenho institucional da política pública aí realizada.

4     Contextualizando o Território Mato Grande e o arranjo 
    institucional do PNAE 
Localizado a noroeste de Natal, o Mato Grande é um dos territórios apoiados pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial, do Ministério do Desenvolvimento Agrário – SDT/MDA, sendo composto por 16 municípios: Ceará-mirim, Maxaranguape, Rio do Fogo, Touros, São Miguel do Gostoso, Pedra Grande, São Bento do Norte, Caiçara do Norte, Jandaíra, Parazinho, João Câmara, Pureza, Bento Fernandes, Poço Branco, Taipu e Jardim dos Angicos. É a região que possui o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo (0,625) do Rio Grande do Norte.
Sua população é de 226.408 habitantes, dos quais 109.921 residem na zona urbana e 116.420, na rural. Dos 16 municípios que compõem o território, nove deles têm população menor que 10.000 habitantes, com quatro estando abaixo da faixa de 5.000 habitantes (PTDRS/MDA, 2006).
Ocupa uma área geográfica total de 5.758,6km² – 10,9% da área do Estado. Caracteriza-se por ser um território tipicamente rural, com densidade demográfica de 36,07 habitantes/km², bem inferior à média estadual, que é de 59,99 habitantes/km² (PTDRS/MDA, 2006).
Os municípios participantes da pesquisa possuem um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) baixo: estão abaixo da média do Rio Grande do Norte, que possui o IDH-M de 0,738, e também da brasileira, 0,718, segundo o PNUD 2010. Eles se configuram como áreas em que existem deficiências na distribuição de renda, nos setores de serviços, na saúde e educação. São, portanto, municípios altamente fragilizados e que precisam de um olhar mais apurado dos gestores públicos. Todavia, cabe assinalar que os processos de desenvolvimento destinados a oferecer maiores e diversificadas oportunidades sociais requerem certas formas de coordenação e habilidades sociais (FLINGSTEIN, 2001). No caso de tais municípios, a ideia de uma governança participativa poderia ser capaz de promover a dinamização da vida social e econômica. O ponto é que, conforme será visto posteriormente, esse procedimento ainda necessita da disseminação de práticas que envolvam e mobilizem forças sociais que sejam importantes para a vida política e econômica local (COELHO; FAVARETO, 2012).
Algumas diferenciações/especificidades podem ser observadas quando se realiza uma análise profunda dos arranjos locais e do associativismo em cada um dos municípios pesquisados. Levando isso em consideração, identificam-se dois fatores essenciais para o desenvolvimento do programa na região: 
a)     o ambiente político ou a organização da gestão municipal; 
b)     o tecido social e os espaços participativos.
Algumas considerações em relação a esses fatores. Primeiramente, sublinhe-se que eles são complementares e inter-relacionados. Optou-se por essa separação meramente para favorecer a clareza e sistematização das informações. Em segundo lugar, estão compreendidos na organização da gestão municipal o modo pelo qual os Secretários de Agricultura e Educação lidam com o programa e a relação estabelecida com os técnicos extensionistas da Emater. Já no tecido social, fazem parte as organizações da sociedade civil (cooperativas, sindicatos e associações) que ajudam no processo de implementação e efetivação da política pública. Os espaços de participação social, apesar de serem atrelados à gestão pública e, logo, estarem inseridos no âmbito estatal, refletem também o associativismo local, por isso fazem parte do item b. 

a)     Ambiente político ou organização da gestão municipal 

Com relação à organização das prefeituras ou dos instrumentos de gestão municipal, há uma fraca atuação deles em prol da melhoria da qualidade de vida dos agricultores familiares. Identificou-se que há uma baixa pró-atividade das prefeituras para garantir a conservação dos recursos naturais. Vários gestores afirmam que, nos últimos dois anos, nenhum tipo de medida foi tomada nessa direção. Apenas uma das prefeituras ratifica a existência de um mapa das áreas degradadas e com risco de degradação. Paradoxalmente, todas as organizações da administração municipal atestam que há uma Secretaria de Desenvolvimento Rural e sustentam que são realizadas ações que vão da assistência técnica até a elaboração do Plano de Desenvolvimento Rural. Esse quadro torna-se preocupante quando se observa que os municípios são sustentados economicamente pela agricultura, sendo tal atividade ligada, essencialmente, ao tema da sustentabilidade. Mesmo que os municípios afirmem contar com Secretarias de Desenvolvimento Rural, percebe-se que, no caso de Poço Branco, essa secretaria é compartilhada com a Secretaria de Planejamento, tendo, inclusive, o mesmo secretário, o que demonstra uma visão restrita ou insignificante sobre a temática do meio rural. Quando procurado para dar maiores detalhamentos sobre esse fato, o secretário não se manifestou e recusou a concessão de entrevistas. 
Excepcionalmente, merece atenção o município de Ceará-Mirim, cujo Secretário de Agricultura é uma ex-liderança de movimentos sociais. Em uma conversa, esse secretário afirmou: “hoje eu sou secretário, eu não tenho uma profissão definida pela vida corrida [...]. Eu estou na secretaria pelas articulações que tentei encaminhar, mas eu sou é militante!”. A ênfase na questão da militância social sugere uma relação do funcionário mais próxima e aberta com as organizações dos agricultores familiares. Essa sensibilidade potencializa a política e provoca nos atores envolvidos uma resignificação da importância do papel da gestão pública na dinamização do desenvolvimento rural. Segundo o secretário, para que uma política funcione, é necessário que ela seja divulgada ao público beneficiário. Quando questionado sobre tal ponto, ele expressou uma preocupação em relação ao acesso às informações e mostrou-se sensível ao trabalho conjunto com as associações de agricultores, ressaltando a necessidade de um Estado propositor. Nas palavras dele:

A forma como nós, a gente tem conduzido a gestão da secretaria hoje melhorou muito esse processo de diálogo, mas ainda está longe do que nós sonhamos, é bem verdade. Mas nós hoje fazemos o trabalho da divulgação das políticas públicas a partir dos blogs, né, e também com alguns grupos de agricultores, por exemplo. Nós estamos agora com uma parceria com associação dos agricultores orgânicos para criar uma feira [...]. Mas para que o pessoal se reagrupasse, a gente teve que fazer quatro reuniões, dialogar qual o formato que a gente queria, qual o local ideal que o grupo definiu para comercializar, quais as condições que a prefeitura tinha para ofertar, qual o apoio que poderia dar, então isso são ações participativas. Essa é a forma que tem sido feita, inclusive a nossa gestão, aqui a gente divide tarefa [...]. Todos os funcionários aqui participam das decisões da secretaria. Isso é uma forma diferente de gestão (Entrevista realizada em 20/08/12).

Em direção da ideia de Peter Evans, no trecho acima, o Estado aparece produzindo capital social onde seria, aparentemente, impossível a sua existência. Aqui, entende-se capital social como o envolvimento e a participação em grupos, com consequências positivas para o indivíduo e para a comunidade. De acordo com Bourdieu, capital social é um “agregado dos recursos dos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo” (Bourdieu, 1986, p. 248).
Dos 15 agricultores familiares entrevistados em Ceará-Mirim, seis disseram ficar sabendo da chamada pública pela prefeitura, com o auxílio do atual secretário de agricultura, seis, por via de associações, um, pelos diretores de escolas, e outro, pelo rádio. Esses dados mostram que há um empenho da prefeitura em publicizar as informações, além da parceria com as associações de agricultores.
O município de Touros também aparece como indutor do programa por meio da prefeitura. Segundo entrevista com a secretária de educação, a prefeitura do município divulga a chamada pública no Diário Oficial, mas também transmite a notícia nas associações dos agricultores familiares e nas escolas. Apesar de ela mesma ressaltar a falta de organização dos agricultores familiares, desde 2009 o município trabalha com 10 agricultores individuais e mais algumas poucas associações presentes no local. Dos dez agricultores, oito responderam ficar sabendo da chamada pública via prefeitura ou Emater, já que há um esforço coletivo para a dinamização do PNAE. Um agricultor respondeu que a informação lhe foi repassada por um vizinho e outro a obteve durante as reuniões do Colegiado Territorial.
Nos outros municípios a questão é mais complicada, porque não parece haver uma preocupação com a dinamização da agricultura familiar. O município de Poço Branco, em especial, caracteriza-se pela falta de articulação entre a Secretaria de Agricultura e a de Educação para operacionalizar o programa. Na prática, são poucos os agricultores familiares identificados no município que comercializam para o PNAE. A própria nutricionista que tenta articular o PNAE no nível municipal não consegue dialogar com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, um dos únicos meios de organização dos agricultores nesse município. Maxaranguape também se destaca como um município com dificuldades institucionais, com pouca articulação entre os atores do setor público e com a sociedade. João Câmara, um dos municípios centrais do Território do Mato Grande, não consegue comprar todos os produtos dos agricultores familiares locais, porquanto há um entendimento generalizado de que aí não existe agricultor familiar: “[n]os assentamentos só têm bêbados” foi uma afirmação escutada recorrentemente no trabalho de campo. Essa fala reforça, de certo modo, a criminalização dos movimentos sociais e gera um senso comum de que nos assentamentos de reforma agrária não existem pessoas que produzem. Além disso, funciona como uma visão de mundo que tende a se reproduzir, uma vez que está socialmente estruturada: as autoridades ligadas aos agentes ou às instituições não produzem outras opções de percepção da realidade (BOURDIEU, 1989).
Apesar de ser um município relativamente grande, foi possível entrevistar somente sete agricultores familiares que fornecem para o PNAE. Segundo a nutricionista, a prefeitura não conseguiu articular-se com os agricultores, fazendo com que a compra de produtos fosse realizada em outros locais. Como ela mesma pontuou:

A gente tem o processo de licitação, a gente passa pra o setor de administração e tem a chamada pública. No ano passado a gente não comprou no município, compramos de um município vizinho, mas esse ano a gente já está fazendo a chamada pública de novo (Entrevista realizada em 27/08/2012).

A dificuldade de publicização da chamada pública configura a falta de agricultores encontrados no município. Esse é um fator que limita o funcionamento do programa, que é de responsabilidade das prefeituras. Quando questionados sobre o acesso a essas informações, somente 6% dos entrevistados dos cinco municípios responderam que ficaram sabendo do PNAE via chamada pública. 26% obtiveram-nas pelas relações estreitas mantidas com alguém da prefeitura, 30%, pelas associações locais, e 13%, pela Emater. Sublinhe-se que 25% acionaram fontes diversas (vizinhos, rádio, dentre outras).
A pesquisa buscou entrevistar, igualmente, os técnicos da EMATER, órgão responsável pela prestação desses serviços, mas muitas das sedes da entidade estavam fechadas. Em Touros, o representante da Emater apresentou uma série de dificuldades para a efetivação do programa: falta de recursos humanos, técnicos e financeiros; desorganização dos produtores; baixa qualidade dos produtos. O apelo do representante é pela contratação de mais técnicos para efetivar a assistência no município. Para além dessas limitações, a secretária de educação do município realçou a questão da legalidade, dado que muitos agricultores familiares não possuem a DAP (Declaração de Aptidão). Nesse cenário, observa-se que a falta de assistência técnica e a indisposição do Secretário de Agricultura de consolidar o programa aprofundam ainda mais o distanciamento entre os beneficiários e a política pública. 
Resultados semelhantes foram encontrados nos municípios de Poço Branco e Maxaranguape, sendo que este último possui um agravamento: a falta de organicidade na própria estrutura da prefeitura. Na época da pesquisa, percebeu-se que a Secretaria de Agricultura ocupava um espaço diferenciado das demais secretarias, de longe acesso e quase sem comunicação. Do ponto de vista da política pública, isso dificulta a troca de informações entre secretarias e inviabiliza o contato mais sistemático com os beneficiários do PNAE. Mesmo existindo algumas entidades importantes no município, como a Associação do Assentamento Fazenda da Paz (ACAPAZ) e a Cooperativa COOAPAZ, a falta de entendimento com a prefeitura reforça a problemática de relação entre Estado e sociedade. Para o técnico da Emater desse município, existe uma série de entraves burocráticos na prefeitura e “falta administração do Governo”. Em sua fala, ele destaca a dificuldade de realizar os 30% da compra da merenda escolar de produtos da agricultura familiar, revelando o não cumprimento de parte da obrigatoriedade da política: 

[...] os 30% do PNAE é todo encomendado para a Fazenda da Paz. É a nutricionista que faz isso. Mas desses 30% há uma porcentagem que não sai só da agricultura familiar local, há uma barganha e muita coisa vem do CEASA (Entrevista realizada em 15/05/2012).

Isso reflete a falta de entendimento e esclarecimento sobre a necessidade de se organizar a produção local, seja via associativismo, seja capacitando os diferentes atores participantes do processo. A pesquisa identificou que, apesar de 64% dos agricultores familiares responderem que receberam algum tipo de ajuda da prefeitura (insumos, sementes e adubo), a precariedade da assistência técnica reforça a dificuldade de aumentar a produção e o escoamento. 
Em resumo, dos cinco municípios, somente Ceará-Mirim e Touros organizam-se publicamente para que haja a compra efetiva dos produtos da agricultura familiar. A gestão pública nesses municípios, representada pelo secretário de agricultura (Ceará-Mirim) e pela secretária de educação (Touros), oportuniza relações simétricas e fortalece, através de uma série de ações, a organicidade dos agricultores familiares.
Infere-se, portanto, que o poder público tem enfrentado dificuldades de operacionalização dos programas, pois as instâncias locais, responsáveis por sua execução, contam com poucos recursos de pessoal e infraestrutura, além de escassa formação para a gestão. No âmbito do governo estadual, verificou-se que o processo de execução, fiscalização e avaliação do programa está quase inteiramente sob responsabilidade de um único técnico.
Ressalte-se ainda a necessidade de sensibilização dos diferentes públicos atingidos pelo programa, que ainda têm dificuldades de compreender tais políticas como uma possibilidade de desenvolvimento, inclusão e segurança alimentar. Para muitos gestores, esses programas representam apenas mais responsabilidade. Do ponto de vista dos alunos beneficiados pelas políticas, a aceitação da alimentação oriunda da agricultura familiar é um fator importante tanto para ampliação da compra quanto para a garantia da segurança alimentar. Vários foram os relatos de diretoras e merendeiras evidenciando esse último aspecto. Considerando isso, as ações das prefeituras deveriam orientar-se para a valorização cultural do alimento produzido na localidade (o alimento como patrimônio cultural) e também para os aspectos ligados à segurança alimentar e nutricional.

b) Tecido social e os espaços de participação social 
Uma das primeiras constatações é que os arranjos participativos nos municípios analisados são escassos, raros, sendo muitas vezes meramente formais, sem a participação ativa de representantes da sociedade civil. 
Conforme destacado por Padilha (2012), referente à pesquisa Gestão dos Territórios, o nível de participação política da população é muito baixo, sendo compreendida como algo restrito ao voto. Na mesma direção, a participação em organizações comunitárias significa apenas a contribuição financeira ao sindicato. Instituições como associações, cooperativas e sindicatos parecem não receber tanta confiança por parte da população. Isso, de um modo geral, mantém a tradição de relações clientelistas, subjugando a população aos poderes oligárquicos locais, bem como sustenta as situações precárias em que se encontram os serviços e, sobretudo, dificulta a estratégia de descentralização prevista na abordagem territorial, porquanto grande parte da população continua afastada das institucionalidades que intermedeiam as ações em nível federal. Outro fator prejudicial advindo do não envolvimento populacional em organizações comunitárias é o enfraquecimento da comercialização. O trabalho cooperativo favorece a obtenção de crédito, infraestrutura e até mesmo eleva a competitividade dos produtos no mercado, em razão dos baixos custos de consecução de insumos e a quantidade elevada de produtos à venda, eliminando, inclusive, a figura do atravessador (PADILHA, 2012).
Acrescente-se que há, ao lado da frágil atuação pública, um baixo índice de iniciativas comunitárias, pela via de projetos sociais, culturais e ambientais, por exemplo. Esse é outro ponto que evidencia a restrita participação social – fato que se repete em termos de organização de movimentos de reivindicação, cuja frequência é irrisória. 
Tal comportamento se reproduz em espaços de debate público e controle social, a exemplo dos conselhos municipais. Para Lüchmann (2002), essas experiências participativas representam uma “inovação institucional” em direção, principalmente, à democratização, porque possibilitam o controle social na definição e efetivação de políticas públicas. No caso de espaços de participação que incluem representantes do meio rural, essa questão se agrava. Em todos os cinco municípios pesquisados, os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR) estavam desativados. Esses conselhos, além de permitirem e potencializarem, teoricamente, o acesso dos agricultores familiares a discussões e decisões relativas ao desenvolvimento rural dos municípios, poderiam ser um canal promissor para os debates sobre alimentação escolar, políticas de abastecimento, comercialização etc. Contudo, em muitos dos casos, os secretários de agricultura mantinham os CMDRs unicamente como meio de receber os recursos e repasses do PRONAF Infraestrutura. Uma das reivindicações feita por um dos representantes dos agricultores familiares à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na época participante do Colegiado Territorial (2011), foi a de tentar oferecer cursos de capacitação sobre a importância do resgate de tais espaços participativos a agricultores e assentados, dado que eles se tornaram meramente burocráticos.
Nos municípios pesquisados, os Conselhos de Alimentação Escolar foram criados recentemente como forma de obtenção de repasses dos recursos federais para a merenda escolar. Entretanto, o que se registra é o alto grau de personificação desses espaços desde o momento de sua criação: em certos casos, é personalizado em algum representante do poder público, em outros, especialmente naqueles em que o tecido associativo é mais enraizado, na pessoa de um representante do movimento sindical. Em João Câmara, por exemplo, um sindicalista é presidente do conselho por duas gestões seguidas. Destaque-se que, segundo a lei, nem o representante do executivo nem o do legislativo podem assumir as funções de presidente e vice-presidente do conselho. Além disso, o prefeito é obrigado a acatar a composição do conselho, não tendo poder de veto sobre a escolha dos conselheiros. Na prática, em três dos municípios estudados, os representantes do poder público, apesar de não estarem cadastrados como presidentes desse conselho, são os que comandam parte de suas ações, com exceção dos municípios de João Câmara e Touros. 
Nesses dois municípios, os presidentes dos CAEs são representantes sindicais que, historicamente, atuam em prol da participação mais ativa da sociedade, tentando trazer para a discussão representantes dos agricultores familiares. Conquanto a presidência deles seja assumida por representantes da sociedade civil, observa-se a fragilidade das ações e da própria articulação de outros setores da sociedade; por essa razão, a articulação com os representantes do Estado, que não fazem questão de participar desse espaço, é também dificultada.
Segundo a nutricionista de João Câmara, o CAE do município é composto por representantes do executivo, legislativo, pais de alunos e sociedade civil em geral, porém somente o presidente participa das reuniões. Estas nunca têm quórum e, portanto, não existe debate sobre o funcionamento desse espaço nem sobre a própria política pública, a despeito de o presidente ser bastante atuante em João Câmara. Ela argumenta que

[...] o presidente do CAE é muito atuante, não como representante de um grupo, ele é atuante como presidente. Mas as pessoas comentam e pelo meu ver ele é muito individualista. Pelo que eu percebo os outros membros não participam (Entrevista realizada em 27/08/2012).

Isso reflete a dificuldade de relacionamento entre sociedade e Estado no âmbito desses espaços: ou, por um lado, o poder público não prioriza ideologicamente uma gestão mais participativa ou, por outro, os representantes que se destacam acabam atuando de maneira individualista, sem mobilizar o restante da sociedade. O último fator aponta para problemas referentes à mobilização dos interesses de grupos sociais que necessitam estar envolvidos com a questão da merenda escolar, como os próprios agricultores familiares que vendem para o PNAE. Na opinião do presidente do CAE de João Câmara, há uma dificuldade real de mobilização dos segmentos do poder público ou da sociedade civil que deveriam participar da política: 

São quatorze membros com os suplentes, sete são os titulares, e eu mandava o comunicado. Tenho tudo registrado, todos os arquivos, porque eu registro tudo. Então marcou a reunião pra hoje, não veio? Está aqui. Escrevia, botava a ficha aqui (...). O executivo veio uma vez, que foi no início e nem veio mais e eu solicitei e até hoje estou esperando (Entrevista realizada em 27/02/2012).

O fato de a nutricionista do CAE notar que existe uma atuação quase individual pode estar relacionado à falta de um tecido tenso associativo enraizado no município e, mais provavelmente, de uma espécie de tradição cultural baseada no distanciamento entre Estado e sociedade para a construção conjunta de políticas públicas e alternativas de desenvolvimento local.
O quadro abaixo sintetiza as informações coletadas na pesquisa, destacando a relação entre uma gestão pública eficiente, preocupada em operacionalizar o programa, e o tecido social:

Quadro 1 – Relação entre organização da gestão pública e tecido social na operacionalização do PNAE nos cinco municípios

 

Quadro 1

Fonte: A autora (2014).

O quadro aponta para a necessidade de articulação entre poder público e sociedade para que a política funcione devidamente. Nele, verifica-se que nos locais em que existe uma maior abertura da gestão pública, combinada à articulação dos atores sociais, consegue ser atingida a compra mínima exigida pelo programa de agricultura familiar. Nos municípios onde somente os técnicos ou o chamado segundo escalão estão à frente da política, sem uma intervenção maior da sociedade, a política não é implementada como deveria ser. Nota-se também a insuficiência da atuação dos conselhos como agentes fiscalizadores, já que muitos não existem e/ou ainda estão em reconstrução.
Na prática, o funcionamento desses espaços, especificamente dos CAEs, acontece de maneira bastante frágil. Isso já foi salientado em outros estudos sobre conselhos, mas tais questões devem ainda ser problematizadas, exigindo uma relativização desses espaços de participação como promotores de política pública. Na maioria dos casos, não existe organização nem capacidade de pressão coletiva para exigir uma participação efetiva. A prática demonstra também a fragilidade dos atores atingidos pela política, como os agricultores, que, por vezes, se defrontam com novas formas de dominação técnica. Diante desse quadro, é preciso buscar meios para que os atores aprendam a resolver o problema da tradução, no qual a criatividade cultural e a competência política são igualmente importantes, significando aprender a traduzir experiências do particular para o geral, do institucional para o civil.

5     Considerações finais
Neste artigo, argumentou-se que os arranjos institucionais locais e o tecido social dos municípios são responsáveis pela efetivação de uma política pública. Tomou-se como referência o modo pelo qual o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é conduzido em cinco municípios do Território Mato Grande, RN. Optou-se por utilizar uma abordagem analítica relacional, por entender que esta é capaz de operar junto da complexidade dos processos sociais em jogo. 
A pesquisa mostrou que, mesmo existindo algumas associações nos municípios pesquisados, a política só funciona quando há uma interlocução com os gestores públicos. Observou-se que o tecido social tem um papel relevante na estruturação e mobilização dos agricultores, mas isso acaba, pelos problemas apresentados ao longo do texto, não se configurando numa maior aproximação com a política. Semelhantemente, não se pode afirmar que essas entidades sociais são protagonistas do desenvolvimento local, já que ainda não conseguem manter um forte diálogo com o poder público, via participação nos conselhos ou no Colegiado Territorial. A fragilidade do tecido associativo em muitos dos municípios analisados dificulta, pois, o acompanhamento e participação na política, reproduzindo práticas frequentes no meio rural nordestino, como o clientelismo e o mandonismo, indo ao encontro da argumentação de Andrade (1998), para a qual “a realidade da dádiva ao invés do direito, tão cara ao clientelismo político, ainda é dominante no contexto da política nordestina” (p. 139-140).
Com relação aos espaços de participação social, a inserção de segmentos que, até então, não faziam parte do debate público não implicou nenhuma alteração importante na democratização da gestão municipal. O poder continua centralizado nas mãos de determinados grupos sociais ou de indivíduos, geralmente os que sempre estiveram à frente da formulação das políticas públicas. Isso evidencia, de certa maneira, que o espaço político reservado aos conselhos ainda é bastante incipiente. O problema passa, portanto, pela capacidade de compreensão e de condições para o reconhecimento político da posição dos grupos tradicionalmente excluídos. Não se trata de esperar que as posições dos conselhos prevaleçam sobre as do governo, mas de reconhecer que, mesmo sendo consultados sobre importantes decisões referentes às políticas públicas, eles contam com poucos recursos políticos para vocalizar e, principalmente, tornar visíveis e efetivos os interesses dos atores que deles participam. 

Notas 
 1.    A pesquisa sobre o PNAE está relacionada ao projeto de extensão PAA e PNAE como estratégia de desenvolvimento rural: articulação entre gestores, agricultores e técnicos, finalizado em 2013, com financiamento do Ministério da Educação (MEC).
2.    Os projetos relacionados à questão da participação social são os seguintes: Mediadores sociais e a relação com agricultores familiares no processo de gestão compartilhada das políticas públicas territoriais: um estudo no Colegiado Territorial Mato Grande/ RN (UFRN), coordenado pela autora e finalizado em 2013; e Representação política, agricultura familiar e segurança alimentar: um estudo nos Conselhos de Alimentação Escolar do Mato Grande, financiado pela FAPERN.
3.     A pesquisa sobre o PNAE identificou que 67 % (N=26) dos agricultores familiares entrevistados mudaram seus hábitos alimentares quando começaram a participar do programa.

 

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