Avançamos na PNDR II, mas falta transformá-la em uma estratégia de Estado

Nos últimos dez anos, muita energia foi despendida na elaboração de uma criteriosa proposta de política de desenvolvimento regional de caráter nacional, quando se chegou, enfim, a uma versão bastante coerente: a PNDR II, que, discutida por 13 mil conferencistas, conduziu à elaboração de um Projeto de Lei de uma nova política regional.

O artigo “A nova Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR II: entre a perspectiva de inovação e a persistência de desafios”, de Alves e Rocha Neto (2014), traz uma sistematização detalhada e convincente das questões enfrentadas e a enfrentar nessa longa construção institucional e política, ainda em processo.

Depois de exatos vinte anos sem uma estratégia para enfrentar nossas históricas e persistentes desigualdades inter-regionais – desde a crise da dívida externa até o final do Governo FHC (1994-2002) –, o Governo Lula, ao assumir em 2003, criou institucionalidades, elaborou políticas de cunho territorial e iniciou uma luta para vencer o caráter setorial e fragmentado das políticas públicas. Avanços ocorreram, sobretudo no diagnóstico mais aprofundado das problemáticas socioespaciais. Documentos importantes foram discutidos amplamente e confeccionados, com destaque para a elaboração da PNDR, no primeiro ano de governo, e sua posterior institucionalização pelo Decreto Nº 6.047, de 22/02/2007.

Entretanto, vários aspectos da política regional não avançaram. Não foi criado o fundo nacional de desenvolvimento regional, nem operaram as instâncias de governança esboçadas, nem a temática ganhou centralidade na agenda governamental. Por outro lado, no período de crescimento 2004-2008, uma série de iniciativas de cunho desenvolvimentista foi implementada. 

Avanços expressivos nas políticas de transferência de renda, no crescimento formal do emprego, na valorização do salário mínimo, na expansão do crédito ao consumo e ao investimento, na expansão do Ensino Superior, dentre inúmeras outros exemplos, constituíram-se em verdadeiras políticas regionais implícitas, que acabaram beneficiando indireta e “desproporcionalmente” – criando uma “boa anormalidade” – as áreas com menores ritmos de crescimento.

Vivemos hoje em conjuntura crítica. A partir da impactante crise mundial de 2008, paulatinamente o regime de crescimento, estabelecido em 2003, e sua correspondente aliança política instável deram mostras de fissuras ou esgotamento, tendo seu auge crítico nas eleições de 2014 e no início de 2015.

O certo é que, frente às inúmeras turbulências econômicas e políticas da conjuntura, não se pode correr o risco de pôr a perder o verdadeiro patrimônio e acúmulo políticos representados pelos esforços de, durante dez anos, desenhar e aperfeiçoar uma estratégia regional avançada para o país.

Do meu ponto de vista, a principal diretriz de longo prazo estabelecida na nova PNDR é a estruturação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Regional (SNDR), em quatro âmbitos de governança: o âmbito estratégico, do Conselho Nacional de Integração de Políticas Regionais e Territoriais; o âmbito tático, da Câmara de Gestão de Políticas Regionais e Territoriais; o âmbito operacional, dos vinte e sete Comitês Estaduais de Gestão de Políticas Territoriais e Regionais; e o âmbito programático das novas institucionalidades (Fóruns, Agências, Consórcios etc.).

Outra ocorrência importante foi o estabelecimento dos quatro objetivos específicos da PNDR II, que definiram critérios claros de elegibilidade para as regiões. Eles priorizam: 1) a Convergência: a busca da equidade, isto é, redução das diferenças no nível e no ritmo de desenvolvimento entre e dentro das heterogêneas porções do vasto território nacional; 2) a Competitividade: a busca da capacitação produtiva e reconversão das regiões em declínio e perdedoras de população; 3) a Diversificação: a busca da fuga da tendência à extrema especialização produtiva e à baixa agregação de valor econômico de regiões em desvantagem; 4) as Centralidades urbanas: a busca do apoio à estruturação de uma rede de cidades mais equilibrada, pela qual sejam possibilitados processos de desconcentração e interiorização do desenvolvimento. 

Da transição da PNDR I para o processo da PNDR II, ficou visível a urgência de progredir na repactuação federativa, em todos os níveis de governo, para construir uma estratégia consistente ao desenvolvimento regional brasileiro. Uma matéria também elucidada no processo foi a preocupação com o papel que o ente estadual deveria cumprir na definição de prioridades sub-regionais (nas escalas microrregional e supralocal, sobretudo) em plena consonância com o planejamento estadual e nacional.

Os hercúleos e perenes desafios para vencer o caráter setorial, fragmentado e pontual das ações públicas e para organizar e hierarquizar uma agenda territorializada de políticas públicas convergentes e coordenadas espacialmente, em especial nas áreas mais vulneráveis, foram, igualmente, ressaltados.

No cerne desse chamamento, encontra-se a premência em se avançar nos diálogos e nas articulações entre os dois entes federativos subnacionais, dando destaque aos centros urbanos intermediários, que comandam sub-redes estratégicas de cidades com suas hinterlândias, mas também atentando para as variadas ruralidades e sua relação com as cidades-locais. Na verdade, há consciência das dificuldades da construção das escalas supralocais, micro e meso regionais no contexto da federação trina brasileira.

Para que a PNDR II siga adiante é crucial fortalecer a SDR/MI, a SPI/MPOG, a Subchefia de Assuntos Federativos da Secretaria de Relações Institucionais, dentre outros órgãos, com recursos financeiros, humanos e, sobretudo, políticos. A Presidência da República e a Casa Civil devem coordenar esse fortalecimento, trazendo e mobilizando atores políticos de prestígio e autoridade para sustentarem a sua implementação.

O desafio de maior legitimação na sociedade e no governo da questão regional, uma questão de Estado, inerentemente (e que deve ser tratada como tal), é sancionar politicamente e construir cotidianamente, na prática, o modo transversal, multidimensional e transescalar de tratamento da questão regional brasileira e de atuação das políticas públicas no(s) território(s), não apenas introduzir ou reforçar a dimensão territorial nas principais políticas e planos federais de caráter setorial. O diálogo permanente com os planos e as políticas nacionais setoriais com mais repercussões territoriais (PAC, Brasil Maior, Brasil sem Miséria, ENCTI, PNE, PNLI, PNDU, PNLT etc.) torna-se decisivo.

A grande utopia é a construção da intersetorialidade das políticas públicas e da cooperação interministerial, intersecretarias estaduais e municipais, em um virtuoso e complexo jogo (não de soma zero) interinstitucional e intergrupos de poder nos aparelhos de Estado. 

Uma importante proposta da PNDR II é estabelecer, orientada pelos princípios da transversalidade, multidimensionalidade e transescalaridade, “Pactos de Metas”, a serem firmados entre o Ministério da Integração Nacional e os ministérios setoriais, gerando compromissos regionalizados de ações concertadas nas áreas da saúde, educação, indústria, CT&I, serviços básicos etc., a fim de avançar no processo de desenvolvimento, com inovação e inclusão social, em sua dimensão espacial e territorial, de forma abrangente e coerente.

É necessário para o desenvolvimento econômico que as inversões de capital tenham não só potência em termos de quantidade, mas, antes de tudo, de qualidade, isto é, gerem encadeamentos intra e intersetoriais (assim como intra e inter-regionais e intra e interurbanos), além de impostos, empregos e divisas robustos e duráveis. É preciso avançar rapidamente para montar, desenvolver e coordenar equações financeiras científicas, tecnológicas, educacionais e políticas que articulem tais iniciativas.

Essas e outras ações devem ser potencializadas pela envergadura e dimensão da estratégia aqui discutida, tendo por base a valorização da diversidade regional, do caráter continental e estruturado em variados espaços urbanos detentores de dinamismos peculiares, alguns latentes, outros manifestos. Ou seja, deve-se lutar por um planejamento territorial que construa vetores estratégicos que permitam gerar impulsos dinâmicos e gere maior convergência de renda e de oportunidades e um processo de coesão que, ao mesmo tempo, respeite e valorize nossa diversidade.

O Brasil precisa construir estratégias e instituições capazes de conectar os canais de interação entre ciência, progresso técnico, crescimento econômico e construção de capacidades humanas criativas para a adequada constituição da almejada homogeneização social, rompendo a histórica e persistente marginalização da maior parte da população brasileira em relação aos benefícios do progresso técnico e ao acesso aos serviços sociais públicos básicos.

Há que se pôr no centro dos debates sobre os desafios e a natureza do desenvolvimento no Brasil a utopia de buscar as múltiplas interfaces e de articular, consistente e perenemente, o Sistema Nacional de Fomento (BNDES, CEF, BB, BNB etc.), o Sistema de Proteção e Provisão de Bem-Estar Social, o Sistema de Aprendizado/Educação/CT&I e o Sistema Nacional de Políticas Regionais.

Os desafios são enormes, mas o diagnóstico mais geral, em nível nacional, está bem realizado pelo Ministério da Integração, enriquecido pelos debates das Conferências Nacionais de Desenvolvimento Regional. 

Sabe-se que o território deveria cumprir o papel de catalisador da articulação sistêmica e da integração multissetorial dos investimentos e de lócus para a elaboração e implementação de uma ação pública abrangente e estruturante. Sabe-se ainda que essa ação precisa avançar em intervenções pluridimensionais, transetoriais e multiescalares para dar conta da complexidade das questões regionais brasileiras e, assim, transformar, com qualidade, a vida cotidiana de pessoas concretas. 

Infelizmente, porém, atores políticos de peso que sustentem uma política de tal complexidade ainda são escassos. Não se consolidaram legitimação e força política suficientes para romper o impasse da implementação de políticas nacionais e regionais de desenvolvimento que, simultanemante, respeitem e façam aflorar nossa diversidade, promovam o enriquecimento cultural, bem como enfrentem o abissal subdesenvolvimento das regiões menos favorecidas pela má distribuição do enriquecimento material em relação às regiões mais ricas. 

Em certo sentido, se bem conduzida, uma política regional de caráter nacional pode dar transparência ao jogo democrático, ao ser reveladora das desigualdades interpessoais e inter-regionais postas na sociedade. Justamente por isso ela geralmente é combatida e interditada pelas forças arcaicas e conservadoras que ainda existem no Brasil. 

É preciso questionar e qualificar melhor: que forças sociais e políticas legitimariam, na atualidade, uma agenda concreta de planejamento regional no Brasil? Essa temática não estaria jazendo há muito tempo na periferia da agenda concreta do núcleo do poder? Como poderia ganhar nova posição nessa agenda? Há sentimento de solidariedade social e política inter-regional capaz de sancionar transferência de recursos materiais, políticos e simbólicos para enfrentar nossas abissais desigualdades regionais? Com que atores, agentes e sujeitos sociais, econômicos e políticos se poderia contar para levar adiante um empreendimento de tal envergadura? O que causa estranheza é que se certo patamar de proteção social e de políticas sociais compensatórias foram razoavelmente sancionadas e legitimadas por grande parte da população brasileira, por que então as políticas regionais não encontram apoio ou o mesmo status político? 

O Brasil legitimou, bem ou mal, um federalismo da proteção social mínima, a partir da Constituição de 1988. Avalizou, desse modo, um enfrentamento de suas seculares desigualdades interpessoais. Por que não legitima, então, o enfrentamento de suas desigualdades inter-regionais?

Às vezes, penso que, enquanto não se afiança politicamente uma PNDR, talvez fosse o caso de formular e implementar algumas ações estruturais de peso, em algumas regiões-programa-problema, que poderiam, quem sabe, ir legitimando, aos poucos, a construção de uma abordagem regionalizada dos problemas sociais, produtivos, ambientais etc. Em outras palavras, poderíamos apostar na ação mais focalizada, criando algumas regiões transformadas em “vitrines” e, no longo prazo, isso poderia angariar forças e enfeixar bons projetos rumo a uma consistente política regional mais geral e universalizada. Por exemplo, poderiam ser atacadas, de início, a situação das áreas que estão recebendo ou receberão grandes projetos de investimento e que, por essa razão, veem tendo suas estruturas e dinâmicas micro e mesorregionais rapidamente desestruturadas e/ou reconfiguradas. Por exemplo, eu apostaria em uma ação concentrada no Estado do Maranhão, o qual se apresenta hoje como uma síntese de nossos problemas conjunturais e estruturais. Transformar em alguns anos os indicadores sociais sofríveis daquela unidade da federação teria um efeito de demonstração impactante para revelar a potencialidade de uma política regional consistente.

A luta constante e de longa duração por uma política regional não pode perder ímpeto, pois os constrangimentos são enormes e quase tudo conspira contra ela. Na realidade atual, as emendas parlamentares, os fundos constitucionais, os fundos de desenvolvimento e os incentivos fiscais não apresentam qualquer diálogo nem, muito menos, estão subordinados às estratégias de política regional. A extrema complexidade de uma política regional de caráter nacional demonstra que ela deve ser questão não de um governo, mas, sim, ter a permanência e a consistência de uma política de Estado. Uma política nacional de desenvolvimento regional atravessa e amalgama questões que em si, isoladamente, já apresentam natureza complexa: pacto federativo, reforma tributária, atração de investimentos e guerra fiscal, intersetorialidade de políticas, seletividade do financiamento. Assim, ela exige aglutinação de forças e uma consistente articulação de partidos, políticas, políticos e outros atores, Estados, municípios, ministérios e outros órgãos governamentais (Silva, 2014).

Essa política, se tiver efetividade, só logrará ser adequadamente avaliada e avalizada social e politicamente em longo curso histórico. Requer-se, pelo menos, um quarto de século para uma política de desenvolvimento regional de tal envergadura mostrar seus resultados concretos, duradouros e de forma enraizada e, assim, legitimar-se de forma a permanecer no centro da agenda do poder constituído.

É bom lembrar que quem lida e milita com a questão regional mantém a enorme utopia de, idealmente, fazer operar políticas concebidas e estruturadas, esparsa, pontual e setorialmente, segundo lógicas sistêmicas e coerentes, sob a orientação de uma estratégia espacializada de desenvolvimento. Ou seja, crê e luta por enquadramentos em molduras regionais-territoriais-espaciais das grandes questões nacionais. De resto, mesmo com as conjunturas adversas, ainda há esperança de que as utopias possam mover o mundo em uma direção melhor do que a que nos encontramos atualmente. E a luta nessa direção é o que conta.

Referências 

ALVES, Adriana M.; ROCHA NETO, João Mendes. A nova Política Nacional de Desenvolvimento Regional – PNDR II: entre a perspectiva de inovação e a persistência dos desafios. Revista Política e Planejamento Regional (PPR), Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, jul./dez. 2014.

BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL (Brasil). Um olhar territorial para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: BNDES, 2014.

COÊLHO, Vitarque L. P. A esfinge e o Faraó: a política regional do Governo Lula (2003/2010). 2014. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, 2014. 

SILVA, Simone Affonso da. O planejamento regional brasileiro pós-Constituição Federal de 1988: instituições, políticas e atores. Dissertação (Mestrado em geografia) – Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

Acesse o arquivo

Voltar